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Uma fortaleza inabalável – Mateus Websky

ein feste Burg - Partitura de “Castelo Forte” assinada por Martinho Lutero

Partitura de “Castelo Forte” assinada por Martinho Lutero. Imagem Wikipedia

Neste ano de 2017 por todo mundo deram-se comemorações pelos quinhentos anos da Reforma. Então em clima de retrospectiva, queria falar sobre um dos hinos mais queridos deste período dos reformadores: “Ein feste Burg ist unser Got”.

Eu lembro de aprender a cantá-lo, em alemão, ainda muito criança, junto com minhas irmãs. Também lembro de tocar a versão orquestrada por Johann Sebastian Bach (sobre a qual falarei mais abaixo) na Camerata da orquestra da cidade uns quinze anos atrás, aproximadamente. Sei que muitos também devem ter muito carinho por este hino, da mesma forma que eu.

Este hino foi composto pelo próprio Martinho Lutero, entre 1527-29, e muito embora a circunstância exata em que foi composta não seja conhecida com certeza, é fácil imaginar Lutero vendo os muros do castelo de Wartburg nos dias que antecederam ao seu julgamento em Worms. Sua confiança estava em Deus. Ele sabia que Satanás era o seu grande Inimigo e seu defensor era Jesus. Os adversários procuravam prendê-lo e matá-lo; a Palavra de Deus tinha poder para salvá-lo. Nada – ódio, ofensa, morte – poderia atingi-lo, porque o Reino de Deus é eterno!

Wartburg

Wartburg, que serviu para exílio de Lutero, e também onde ele traduziu a Bíblia para o alemão. Foto: Thomas Doerfer

Muito se fala que Lutero teria usado uma melodia popular da época cantada nas tavernas¹. Isso serviria como argumento para aqueles que defendem uso de músicas populares com letras cristãs – movimento que iniciou na década de 70 nos Estados Unidos. Mas isso não é verdade, não encontra lastro histórico nenhum. O famoso hino lembra melodias do canto gregoriano, e certamente foi composta por ele mesmo. Uma análise histórica mais profunda pode ser lida aqui. No tempo de Lutero, os “corais” (hinos para a congregação) eram cantados sem acompanhamento instrumental; o órgão de tubos fazia o prelúdio; esse instrumento era usado em alternância com o coro: um verso tocado pelo órgão e o verso seguinte pelo coro e a congregação².

Lutero cria que o hino tinha poder para transmitir substância teológica, a letra da canção foi baseada no Salmo 46, cujo texto transcrevemos abaixo na tradução Almeida séc. 21:

(Ao regente do coro: Cântico dos filhos de Corá, adaptado para Alamote)
Deus é nosso refúgio e fortaleza, socorro bem presente na angústia.
Por isso, não temeremos, ainda que a terra trema e os montes afundem nas profundezas do mar;
ainda que as águas venham a rugir e espumar, ainda que os montes estremeçam na sua fúria. (Interlúdio)
Há um rio cujas correntes alegram a cidade de Deus, o lugar santo das moradas do Altíssimo.
Deus está no meio dela, e não será abalada; Deus a ajudará desde o amanhecer.
As nações se enfurecem, os reinos se abalam; ele levanta sua voz, e a terra se dissolve.
O SENHOR dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é nosso refúgio. (Interlúdio)
Vinde, contemplai as obras do SENHOR, que devastações fez na terra.
Ele acaba com as guerras até os confins do mundo; quebra o arco e despedaça a lança; destrói os carros com fogo.
Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus; sou exaltado entre as nações, sou exaltado na terra.
O SENHOR dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é nosso refúgio. (Interlúdio)

É sem dúvida uma pena que poucos evangélicos hoje se dediquem a conhecer as riquezas contidas no saltério, e olhar para seu uso neste hino nos leva a refletir sobre o quanto estamos perdendo quando o negligenciamos.

Podemos ler abaixo a letra original em alemão, ao lado de uma tradução literal³. Note que há algumas diferenças em relação às versões brasileiras, porque numa música há critérios de métrica e rima que devem ser levadas em conta.

1. Ein’ feste Burg ist unser Gott,
ein’ gute Wehr und Waffen;
er hilft uns frei aus aller Not,
die uns jetzt hat betroffen.
Der alt’ böse Feind,
mit Ernst er’s jetzt meint;
groß’ Macht und viel List
sein’ grausam’ Rüstung ist;
auf Erd’ ist nicht seins Gleichen.

2. Mit unser Macht ist nichts getan,
wir sind gar bald verloren;
es streit’t für uns der rechte Mann,
den Gott hat selbst erkoren.
Fragst du, wer der ist?
Er heißt Jesus Christ,
der Herr Zebaoth,
und ist kein andrer Gott,
das Feld muß er behalten!

3. Und wenn die Welt voll Teufel wär’,
und wollt’ uns gar verschlingen,
so fürchten wir uns nicht so sehr,
es soll uns doch gelingen!
Der Fürst dieser Welt,
wie sau’r er sich stellt,
tut er uns doch nichts;
das macht, er ist gericht’t;
ein Wörtlein kann ihn fällen.

4. Das Wort sie sollen lassen stahn,
und kein’n Dank dazu haben!
Er ist bei uns wohl auf dem Plan,
mit seinem Geist und Gaben.
Nehmen sie den Leib,
Gut, Ehr’, Kind und Weib,
laß fahren dahin;
sie haben’s kein’n Gewinn!
Das Reich muß uns doch bleiben!

1. Uma poderosa fortaleza é o nosso Deus,
Boa defesa e armas de ataque;
Ele nos ajuda a libertar de toda a angústia
Que a nós tem agora afetado.
O velho inimigo, o mal,
Agora significa desgraça mortal,
Ele tem poder grande e é muito esperto,
Sua defesa é cruel,
Na Terra não há igual.

2. Com o nosso poder nada pode ser feito,
Estamos muito perto de perder;
Mas, há um Homem certo para esta disputa,
A quem o próprio Deus elegeu.
Pergunta você: “Quem é este?”
Seu nome é Jesus Cristo,
O Senhor dos Exércitos.
E não há nenhum outro Deus,
Ele manterá o campo.

3. E Se o mundo estiver cheio de demônios
Que nos querem devorar,
Não tenhamos, portanto, tanto medo;
Teremos sucesso ainda.
O príncipe deste mundo,
Quão terrível se faz,
Porém ele não poderá fazer nada,
Pois já está julgado,
E uma pequena palavra pode derrubá-lo.

4. A Palavra ainda ficará,
Permaneçamos gratos por ela;
E Ele estará a vontade sobre a situação,
Com Seus dons e o Espírito.
Que levem o nosso corpo,
Os bens, a fama, crianças e esposa;
Pois embora tudo isso vá,
Eles não têm nada a ganhar,
Mas o Reino será nosso.

Um detalhe que escapa na tradução é que existem dois termos em alemão para o que traduzimos por “castelo”4. O primeiro é “Schloß”, e se refere a um palácio, uma construção bonita, usada pela nobreza, esplendorosa para festas e ocasiões solenes, principalmente em tempos de paz. O segundo termo é “Burg”, e se refere a uma fortaleza, tem usos militares, e o que importa é que seja forte, inatingível diante dos ataques inimigos, e oferece abrigo seguro ao povo e aos soldados que ali se refugiam. A beleza aqui não é importante, mas sim que haja espessas muralhas, portões sólidos e torres altas de onde se possa avistar os exércitos à grande distância. Este segundo termo é o empregado no hino. Então quando ouvimos a canção devemos imaginar uma fortaleza inabalável, apta a nos refugiar nos dias mais sombrios de batalha neste mundo. Não estamos falando de palácios enfeitados, como das princesas da Disney. Nosso Deus não nos mantém aqui neste mundo para desfrutarmos de regalias e vivermos num mar de rosas, mas para lutarmos o bom combate vestindo a armadura de Deus (Efésios 6).

Wittenberger Schloß

Wittenberger Schloß, local onde Lutero afixou as 95 teses na porta da igreja em 1517. Foto: Baumbach

A qualidade musical de “Castelo Forte” é atestada pelo uso que se fez da obra no decurso da história. Johann Sebastian Bach (1685-1750) a usou para criar a sua cantata BWV 80 em homenagem à Reforma. Não foi o único compositor a utilizá-la: Felix Mendelssohn (1809-1847) usou o hino na Sinfonia nº 5, intitulada A Reforma, considerada por alguns como uma obra-prima. Outros músicos importantes como Giacomo Meyerbeer (1791-1864), Wagner (1813-1883) e Strauss (1864-1949) também utilizaram o hino de Lutero em suas composições.

Johann Sebastian Bach, um dos maiores compositores da história da música erudita, era luterano e foi o organista principal de diversas catedrais da Saxônia. Entre os anos de 1727 e 1731 compôs uma cantata coral em provável comemoração ao bicentenário da Confissão de Augsburg (ainda que aparentemente a cantata só tenha sido apresentada algum tempo depois). A Confissão de Augsburg é um documento central da doutrina luterana, e foi escrito pelos primeiros reformadores luteranos a fim de apresentá-la ao imperador do Sacro Império Germânico, Carlos V, e se tornou uma profissão de fé oficial desta igreja até hoje5. A cantata inclui em sua melodia a própria descrita acima, de Martinho Lutero, tornando-se portanto uma bela homenagem à Reforma e ao próprio reformador.

Bach foi um grande mestre do contraponto, e a beleza desta forma musical pode ser melhor apreciada neste vídeo aqui, que recomendo fortemente sua visualização. Mesmo quem não entende inglês ou não estudou música poderá compreender esta explicação do primeiro movimento da Cantata, pois ele é muito didático e usa diferentes cores para apresentar os temas musicais e seus usos nas diferentes vozes e instrumentos.

Ao fim, fica o convite para apreciar a Cantata BWV 80 completa aqui, celebrando desta forma a nossa rica herança protestante. Neste ano talvez tenhamos passado por duros ataques do inimigo e severas provações, mas em todo momento podemos louvar ao nosso grande Deus, nossa fortaleza inabalável.

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NOTAS: 1. WARREN, Rick. Uma vida com propósitos. pg. 341. 2. https://musicaeadoracao.com.br/37214/o-hino-de-lutero/  3. http://www.gracaesaber.com/2012/10/castelo-forte-o-hino-da-reforma.html 4. Devo esta percepção ao meu querido professor Pr. Franklin Ferreira, que utilizou esta ilustração no discurso de minha formatura do Seminário Martin Bucer. 5. Para saber mais, clique aqui.

(Mateus Websky é colaborador do blog do I-poimenica)