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Aboadela e a Antiga Via do Marão

Na Idade Média, havia em Portugal localidades com relativa importância e, portanto, caminhos que as ligavam entre si. As vias romanas perduraram e serviram de base ao lançamento das estradas medievais, cuja conservação pertencia às populações, por normas emanadas das próprias autoridades locais, sendo as pessoas multadas se não o fizessem. As vias de comunicação medievais mantiveram-se quase inalteráveis até à “revolução” feita pelo ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria, Fontes Pereira de Melo (1819-1887). Uma fonte da época dizia que, “os caminhos desta Província são, porém, tão mal formados, e oferecem tantos perigos a cada passo, que nos das montanhas, além de não darem passagem em muitas partes a carruagens, não é raro acharem-se homens mortos, por se terem precipitado em despenhadeiros”. (Cf. Lopes, p. 94).

Carlos Balsa (de cujo trabalho dependemos decisivamente aqui) informa que, na Serra do Marão, a principal via utilizada para a transposição tinha um traçado entre Amarante e Vila Real, e o troço entre Aboadela e a Veiga da Campeã era “a parte mais acidentada do percurso”, tendo a via de vencer um desnível de cerca de oitocentos metros.

Num passado não muito distante, a transposição desta serra implicava grandes dificuldades e perigos para quem necessitava de se deslocar entre o litoral e o interior da região Norte do País. Estão ainda presentes na memória dos habitantes da região os temores associados ao antigo caminho do Marão, principalmente devido aos perigos que este representava para os viajantes. São muitos os relatos de aflições devidas ao percurso acidentado, ao rigor do inverno e à presença de salteadores. Em 1796, o Bacharel Ribeiro de Castro escreve que a estrada do Marão é a “mais áspera da província e talvez do Reino”. (Balsa, p. 40).

Região da Serra do Marão (Mapa Hipsométrico)

DO PERÍODO ROMANO AO MEDIEVAL

O referido itinerário maronês foi percorrido desde a pré-história. Vestígios sugerem que terá sido uma importante rota comercial desde a Idade de Bronze. Os romanos, por sua vez, construíram muitas das suas estradas sobre os grandes itinerários naturais, e há vestígios que sugerem fortemente que o mesmo poderá ter sucedido através da serra do Marão, o que é defendido por diversos pesquisadores. Documentos eclesiásticos datados de 569 d.C. e de 1114 referem-se a uma ponte sobre o rio Tâmega em Amarante ou em suas proximidades, portanto em data anterior à original ponte de São Gonçalo de Amarante, que é datada do século treze. A via proveniente de Amarante chegaria a Sanche e Aboadela, onde atravessaria o rio Ovelha, e subia o Marão em direção à Campeã. (Balsa, p. 43). Ao lado oriental do Marão, a via se interconectaria com os caminhos que interligavam a região da atual Viseu a Aquae Flaviae (Chaves) – que serão muito utilizados no período medieval pelos peregrinos a Santiago de Compostela. Nas imediações da encruzilhada estava o santuário de Panoias, importante lugar de culto da época romana.

As estradas romanas perduraram ao longo de muitos séculos. Em particular até ao fim do século doze, durante o período românico, quando as infraestruturas romanas foram objeto de intenso reuso. “Foram reedificadas pontes entretanto desmoronadas ou em mau estado, foram restauradas calçadas, construíram-se igrejas e capelas e outras estruturas religiosas que, por vezes, substituíram diretamente, em termos funcionais, as anteriores estruturas romanas” (Balsa, p. 47).

Na Idade Média, o caminho do Marão teve uma grande importância para o comércio entre o litoral e o interior transmontano, nomeadamente para o comércio do pescado e do sal. (Almeida, 1973). No período medieval, destaques importantes ao longo da via foram sepulturas, arcos, pontes (que se tornaram uma obra religiosa) e as albergarias – estas, instituições de assistência aos pobres, peregrinos e, de um modo geral, a todos os viajantes. “Propiciavam refúgio seguro contra as invernias e os perigos que a noite potenciava, como as feras e os salteadores” (Marques, 2013). A partir da segunda metade do século quatorze, o número de albergarias começou a decrescer e a aumentar o número de estalagens e de vendas. A rede de estalagens e de vendas ter-se-á intensificada no reinado de D. Manuel I. (Marques, 2013). Estas satisfaziam as necessidades de almocreves, peregrinos e outros viajantes. As estalagens proporcionavam dormida e comida; as vendas, por sua vez, comida e bebida. Estas não eram estruturas caritativas como as albergarias, mas cumpriam uma função de grande importância no apoio à viação.

Almeida salienta que nas viagens a partir do Porto para Castela ou Roma, o principal itinerário seguia pelo Marão. (Almeida, p. 50). O mesmo autor defende também que, no sentido de Vila Real para Amarante havia uma ramificação do caminho na Campeã, em direção a Mondim de Basto. Esta variante permitiria encurtar as distâncias entre a terra de Panoias e as terras de Basto, e daqui aos importantes centros urbanos em Guimarães e Braga. Ao lado norte do Marão, a via atravessava o rio Cabril, através da ponte medieval de Vilar de Viando, em Mondim. (Dinis, p. 107).

A Via do Marão; Troços de Diferentes Época

OVELHA DO MARÃO E A ESTRADA REAL

Ao lado ocidental do Marão, o núcleo de Aboadela (antiga Ovelha do Marão) era a porta de entrada, constituindo-se no principal ponto de acolhimento, apoio e informação para quem chegava àquela paisagem de montanha. Em Aboadela, o centro administrativo da Honra de Ovelha era o lugar da Rua. Os reis do período filipino muito favoreceram a edificação de estradas e pontes. A ponte românica do lugar da Rua, sobre o rio Ovelha, foi construída em 1611, no reinado de Filipe II, pelo mestre João Lopes, de Guimarães.  Alguns sugerem que a ponte românica é herdeira da Gilson Santos junto à ponte românica em Aboadelatravessia medieval que assegurava a passagem do trânsito entre Amarante e Vila Real. Balsa argumenta, não obstante, que o lugar mais antigo da honra de Ovelha, referenciada documentalmente, é a Sá, que se encontra a cerca de oitocentos metros a montante do lugar da Rua. Esse pesquisador sugere a possibilidade de “o centro administrativo se ter deslocado da Sá para junto da ponte filipina, passando este lugar a designar-se, então, por Rua”. (Balsa, p. 44).

Quando surgiu a necessidade de transportes mais velozes de mercadorias e de pessoas, o troço entre Ovelha e a Campeã era a parte mais crítica de percorrer, quer na subida quer na descida. Verificavam-se aí declives muito acentuados e curvas muito apertadas em zonas de grandes precipícios. Em 1873, Pinho Leal descreve este percurso da seguinte maneira: “O antigo traçado seguia pelo alto da serra, desde a Campeã até Ovelha do Marão, atravessando muitos quilómetros com tanta altura de neve, durante meses, no inverno, que ali pereceram muitos viandantes, almocreves e correios, pois foi até ao meio deste século a estrada principal e mais seguida do Porto e do Minho para Trás-os-Montes” (Leal, 1886, p. 702). Supomos, assim, que na subida a partir de Ovelha do Marão as diligências, normalmente atreladas a cavalos, tinham de ser puxadas por uma ou duas juntas de bois, que demoradamente as levavam até à Campeã. Em sentido contrário, na descida para Ovelha, estes veículos atingiam facilmente velocidades vertiginosas, que podiam ter por consequência o despenho pela serra abaixo. (Balsa, p. 54)

Tendo em vista as dificuldades do trajeto antigo, uma variante da Estrada Real foi traçada por Covelo do Monte. Esta variante juntava-se à antiga Estrada Real já na freguesia da Campeã.

Na idade moderna, Amarante era o epicentro de vários centros espirituais regionais, como o culto a São Gonçalo, à Santa Senhorinha de Basto e à Senhora da Lapa ou mesmo na ligação aos caminhos de Santiago de Compostela. A Via do Marão providenciou acessos seguros a peregrinos, e alguns sugerem ter sido a peregrinação religiosa um dos fatores para a construção da ponte de Fundo de Rua em Aboadela. A via interligava-se ao sistema denominado Caminho Português Interior de Santiago de Compostela (CPIS).

Em Aboadela, uma estalagem encontrava-se próxima à ponte românica (supõe-se que desde a Idade Moderna), e ainda restam os vestígios das antigas manjedouras. Junto à câmara, no lugar da Rua, localizava-se uma venda. Nas paredes externas da venda e da estalagem, ainda hoje podem ser vistas as argolas nas quais os viajantes amarravam os seus animais. A Via do Marão era muito utilizada por almocreves, que desempenhavam um importante papel nos transportes da região. O almocreve era um mercador que distribuía e trocava produtos entre diversas regiões. Os almocreves percorriam todas as povoações, transportando em cavalgaduras gêneros doutras regiões como, por exemplo, do Porto, arroz, bacalhau, açúcar, aduelas, arcos, pipas, produtos medicinais, chá, café, tecidos, chapéus, cordas, cutelarias, etc, sal da Régua, chapéus de Braga, de Aveiro, sardinha e sal, cutelarias e ferragens de Guimarães, de Mondim, principalmente cera e curtumes, etc.

Almocreve de Torres (Vendedor com uma mula carregada de odres), ca. 1835, Jorge Bekkerster Joubert

Almocreve de Torres (Vendedor com uma mula carregada de odres), ca. 1835, Jorge Bekkerster Joubert (1813-18—), Litografia de Manuel Luís da Costa, 28 x 18,5 cm, Biblioteca Nacional de Portugal. 

Durante as invasões francesas, a Via do Marão foi palco de alguns episódios que deixaram as suas marcas. Na segunda invasão, o plano traçado pelos franceses atribuiu ao marechal Soult a invasão do Norte do País a partir da Galiza. Este penetrou em Portugal após conquistar Chaves, no início do mês de maio de 1809, com o objetivo de ocupar o Porto. Perante a possibilidade de as tropas francesas descerem a Vila Real e dali se dirigirem ao Porto, através do Marão, as forças de defesa de Amarante inutilizaram a nova estrada que seguia por Covelo do Monte (Azeredo, 1984). As tropas francesas do general Soult tomaram Amarante a 3 de maio de 1809. A ponte de São Gonçalo, em Amarante, foi palco do episódio na heroica defesa portuguesa contra as tropas napoleônicas.

As tropas de Sout também passaram por Aboadela, no concelho de Ovelha do Marão, tendo ocorrido ali uma violenta batalha, isto a 9 de maio de 1809. Aboadela foi, deste modo, um local estratégico para o lado português. Na aldeia foi reforçada a artilharia portuguesa, e foi oferecido apoio logístico. As tropas francesas, em sua chegada a Aboadela, e à semelhança do que faziam noutros lugares por onde passavam, serviam-se à força da população, promovendo pilhagem e destruição. Registre-se, por fim, a derrota das tropas francesas contra três corpos de cavalaria portuguesa, o que marcou significativo enfraquecimento para o lado francês.

Em consequência da ação defensiva, a velha estrada do Marão, entre Ovelha e a Campeã, terá sido novamente reativada e percorrida até ao rompimento da nova Estrada Real entre Amarante e Vila Real, na década de sessenta do século dezenove, no âmbito das obras promovidas pelo ministro Fontes Pereira de Melo. A partir de então, procurou-se evitar os grandes declives nas subidas de ambos os lados do Marão, em traçados que favoreceriam as futuras (e atuais) rodovias. A nova Estrada Real tornou-se, então, a principal ligação entre o interior e o litoral do País, só vindo a ser destronada pela via ferroviária do Douro, construída no fim do século dezenove.

JUNTO À PARADA DO ALMOCREVE

Aboadela (antiga Honra de Ovelha do Marão) situa-se na parte ocidental da Serra do Marão. Dista dez quilômetros do centro de Amarante, vinte e seis do centro de Vila Real e sessenta e cinco do centro do Porto. Aboadela é servida pelo Rio Ovelha, o qual nasce na Serra do Marão, perto do lugar denominado Covelo do Monte. Os primeiros registos do lugar datam do século doze, quando Aboadela recebeu o primeiro foral em abril de 1196 no reinado de D. Sancho I, em Guimarães. Outros forais foram atribuídos posteriormente, não havendo, todavia, registros do seu conteúdo. Sabe-se, porém, que em 1212, D. Afonso II confirmou o foral dado por seu pai. No “Livro dos Forais Novos” de Trás-os-Montes existe o foral dado por D. Manuel, em 3 de junho de 1514, neste caso, o último.

Localização de Ovelha do Marão e Canadelo em 1561

Quanto à origem da toponímia “Aboadela”, nos seus primórdios, isto é, por volta de finais do século doze, designava-se por “Santa Maria de Bobadella”, que juntamente com a atual freguesia de Canadelo constituiriam a honra de Ovelha do Marão. A denominação Aboadela sofreu diversas variações ao longo dos séculos, vindo a ser designada como Aboadela de Ovelha do Marão e finalmente conhecida somente por Aboadela. A toponímia tem origem em “aboar”, verbo arcaico, de provável origem francesa, que significa estabelecer marcos ou sinais para dividir, separar ou demarcar.

Em Aboadela, junto ao lugar da “Rua” está o antigo lugar denominado “Barral”. Segue-se um pouco adiante e chega-se ao lugar do “Outeiro”; porém, se do Barral o transeunte preferir subir a colina à encosta, chegará ao lugar da “Igreja”. Estes são lugares dos nossos ancestrais – que foram sepultados na antiga igreja paroquial sobre a colina, tanto no interior quanto no adro. No final do século dezessete, Manoel Garcia e Ângela Gonçalves, meus nonos avós, residiam no lugar do Barral, em Ovelha do Marão. Ele faleceu em 26 de outubro de 1728, e tem o seguinte registro de óbito (com atualização ortográfica minha):

Os atuais lugares do Barral e da Igreja em Aboadela, AmaranteAos vinte e seis dias do mês de outubro de mil setecentos e vinte e oito anos, faleceu da vida presente Manoel Garcia, do lugar do Barral desta freguesia de Santa Maria da Boadella de Ovelha do Marão, com todos os sacramentos. Fez testamento na nota de Francisco Navarro de Gouveia, escrivão nesta Freguesia e Honra de Ovelha, no qual instituiu por seus herdeiros a seus filhos com obrigações nele contidas, e lhe mandariam dizer nove missas rezadas pela sua alma com os maiores costumes nesta dita freguesia, e está sepultado dentro desta igreja de Ovelha debaixo do supedâneo do altar de Nossa Senhora do Rosário, na terceira rampa contando da parede para o corpo da igreja, de que tudo fiz este assento, eu, o padre João Freire de Magalhães, vigário desta dita freguesia, que o escrevi e assinei.

Ângela Gonçalves, minha nona avó, “viúva no lugar do Barral” em Santa Maria de Aboadela de Ovelha do Marão, faleceu em 26 de junho de 1740, tendo sido sepultada no dia seguinte, isto é, no dia 27, “com todos os sacramentos”, isto é, com batismo, crisma, penitência e extrema-unção. Segundo o costume da época, ela “foi embrulhada em lençol”, tendo sido sepultada “no adro detrás da sacristia” da igreja de Aboadela. Ela fez testamento, o qual o cura Manoel Tomás da Costa lançou no livro.

Assim, naquela antiga freguesia, porta de entrada do Marão, e na qual passava a Estrada Real, nas antigas casas de imediações à parada do almocreve, a nossa Família Santos, quando traçar a sua genealogia em linha patronímica, encontrará, portanto, a sua ancestralidade lusitana.

Texto por Gilson Santos, em 21/03/2020. Integra um projeto mais amplo de genealogia e história familiar, do qual o autor faz parte ao lado de vários outros da família. Para contatos com o autor, clique aqui.

Algumas obras consultadas: 1. Almeida, C. A., “Os Caminhos e a Assistência no Norte de Portugal”. In: A pobreza e a assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média. Actas das 1.as Jornadas Luso-espanholas de História Medieval. Tomo I. Lisboa: Instituto de Alta Cultura – Centro de Estudos Históricos, 1973, pp. 39-58. 2. Azeredo, C., As populações a norte do Douro e os franceses em 1808 e 1809. Porto: Museu Militar do Porto , 1984. 3. BALSA, Carlos. “Via do Marão; Contributos para Identificação do traçado do antigo caminho do Marão”. In: Oppidium. Revista de Arqueologia, História e Patrimómio. N. 10/2017. Lousada: Câmara Municipal de Lousada, pp. 39-61. 4. Dinis, A. P., Carta Arqueológica de Mondim de Basto. Mondim de Basto: Município de Mondim de Basto, 2007. 5. LOPES, Eduardo Teixeira. Mondim de Basto; Memórias Históricas. Produção gráfica de MEDISA – Edições e Divulgações Científicas, Lda, 2000, 518p. 6. MAGALHÃES, Francisco A. C., História de Amarante, 2a. edição. Amarante: Câmara Municipal de Amarante, 2008, 277p.  7. Marques, J., “A Assistência no Norte de Portugal nos Finais da Idade Média”. In: Revista da Faculdade de Letras, 2013, pp. 11-94.