A Porta de Entrada do Marão
Ao norte de Portugal há um complexo montanhoso que se inicia na Serra da Peneda do Gerês e que termina na Serra da Aboboreira. Este alinhamento estende-se paralelamente ao Oceano Atlântico e marca a fronteira entre o litoral e o interior do norte de Portugal, formando um obstáculo aos ventos marítimos, numa barreira de condensação que condiciona o clima e a paisagem. [QUINTAS et al.]. Nos primeiros reinados da nacionalidade portuguesa, o obstáculo geográfico era de tal forma marcante que a província situada a leste foi designada de “Trás-os-Montes”. Aquelas serranias separam, portanto, duas das mais características regiões do território português: Minho e Trás-os-Montes.
Localizada ao sul do referido dorso montanhoso, a Serra do Marão compõe, juntamente com a geminada Serra do Alvão, o importante sítio denominado “Alvão-Marão”, que possui uma área de 58.788 hectares distribuído por dez municípios: Amarante, Baião, Mesão Frio, Mondim de Basto, Peso da Régua, Ribeira de Pena, Sabrosa, Santa Marta de Penaguião, Vila Pouca de Aguiar e Vila Real. A unidade de paisagem “Marão-Alvão” constitui, assim, o sistema serrano que estabelece, a norte do Douro, “a divisão entre o litoral, mais úmido e mais densamente povoado, e o interior progressivamente mais seco e também menos povoado” à medida em que se caminha para leste. (CANCELA D’ABREU et al.).
Com orientação noroeste-sudeste, a Serra do Marão separa as bacias hidrográficas dos rios Tâmega e Corgo. Delimitá-la, entretanto, não tem sido uma tarefa unânime. Aqueles que propõem uma delimitação ampla (que geralmente se estende para a Serra da Aboboreira) apontam o rio Tâmega como o limite noroeste. “Em termos morfológicos, a parte do seu troço compreendida entre a foz do rio Ovelha (município de Marco de Canaveses) e a foz do Rio Cabril (município de Mondim de Basto) é o limite natural desta serra”. (PEDROSA, 1993).
Em um recorte ainda mais específico, Marão é o nome da mais importante montanha da serra do Marão que empresta o nome à serrania. Esta montanha fica situada entre os concelhos de Vila Real, Santa Marta de Penaguião, Peso da Régua e Mesão Frio no distrito de Vila Real e os concelhos de Baião e Amarante no distrito do Porto. Esta é, de longe, a montanha mais elevada e proeminente da região maronesa e, em Portugal Continental, apenas existem montanhas mais altas nas serras da Estrela, do Gerês, do Larouco e de Montesinho. A Serra do Marão atinge a máxima altitude de 1415 metros em seu marco geodésico.
A Serra do Marão possui duas vertentes distintas: a encosta Este, caraterizada por sua composição geológica sedimentar, de relevo escarpado, e a encosta Oeste, de relevo mais suave e onde se insere o concelho de Amarante. (PEDROSA, 1993). Na parte ocidental, as áreas mais planas localizam-se em Aboadela e Várzea, às quais se sucedem os declives médios. De um modo geral, o aumento da altitude é acompanhado pela diminuição das temperaturas e pelo aumento da precipitação, sendo o clima predominantemente temperado com verão seco. A serra integra uma das áreas mais pluviosas de Portugal; porém, a pluviosidade é apenas uma das formas de precipitação, pois a queda de neve também ocorre nas áreas mais elevadas. Os meses menos pluviosos correspondem sempre a julho e agosto, e mais de sessenta por cento da precipitação ocorre entre os meses de novembro e março. Do lado ocidental os valores de precipitação se apresentam mais elevados que do lado oriental.
A região montanhosa maronesa caracteriza-se por “um relevo marcante e uma biodiversidade notável, num território onde o homem foi criando paisagem, com a introdução dos seus usos e atividades, com destaque para a agricultura, a silvicultura e a pecuária” (QUINTAS et al.). Atualmente, a agricultura é de caráter predominantemente minifundiário, e na pecuária se destacam as raças autóctones. A vaca maronesa (cuja carne é altamente apreciada na gastronomia) e a cabra bravia são as duas raças autóctones presentes na Serra do Marão.
Em geral, as áreas de montanha são assumidas como genericamente remotas, periféricas, desfavorecidas, em termos de condições naturais e de acessibilidade. Isto se evidencia diretamente na demografia. Tomada em seu todo, na segunda metade do século dezenove, mais especificamente em 1864, residiam na Serra do Marão 76.775 pessoas. Naquele ano, das setenta e nove freguesias existentes, quarenta e nove tinham menos de 1000 habitantes e aí residia 36,2% da população da Serra do Marão. Nas vinte e quatro freguesias com 1000 a 2000 habitantes concentrava-se 44.3% da população. Havia apenas seis freguesias com população superior a 2000 habitantes, nas quais residia 19,5% dos efetivos populacionais da região. A freguesia mais populosa tinha um pouco mais de três mil pessoas. (PEDROSA, 1998).
Os anos que se seguiram a 1864, porém, foram de expansão populacional. Embora momentaneamente interrompido entre 1911 e 1920, por fatores conjunturais, o aumento da população atingiu o seu máximo em 1950, altura em que contaria com 114.739 habitantes. Os anos trinta foram o período com taxa de crescimento mais elevada. Desde então, assistiu-se a um decréscimo populacional e inverteu-se a tendência, que começou a delinear-se nos anos cinquenta, ainda que não generalizada em toda a região maronesa. O fenômeno insere-se nas “tendências dominantes de fuga populacional do interior” (PEDROSA, 1998). Em síntese, a partir de meados do século vinte, o fenômeno a que se assistiu na região foi o de uma acentuação de diferenças entre áreas – algumas com maior ou menor povoamento, e outras em que o fenômeno urbano gerou mecanismos de atração, ou, pelo menos, de retenção populacional. (PEDROSA, 1998). Digno de nota, foi o desenvolvimento do centro urbano da antiga vila de Amarante e de seu entorno, que funciona como a mais importante área de crescimento populacional interno da Serra do Marão – fenômeno, não obstante, incapaz de impedir a perda da população em toda a região. Outro fator demográfico digno de nota é que o número absoluto de jovens vem sofrendo um decréscimo em toda a região, em um valor superior à média nacional.
A PORTA DE ENTRADA DO MARÃO
A mão humana foi moldando a região maronesa, ao construir os seus povoados sobretudo na meia encosta e junto às linhas de água (200 – 400 metros), onde os terrenos eram mais férteis e passiveis de ser cultivados. O relevo impressivo do território maronês é “espelhado pelo seu vasto conjunto de linhas de água, das quais se salientam o Rio Olo, o Rio Ovelha, o Rio Marão, o Ribeiro do Ramalhoso e a Ribeira do Murgido”. (QUINTAS et al.). Em redor das áreas agrícolas a mão humana plantou florestas (400 – 700 metros) e, nas zonas mais altas e de difícil acesso (acima de 700 metros), criou os pastos para os animais. Os aglomerados populacionais de pequena e média dimensão, surgiram, pois, de modo disperso pelo território, encaixados nas encostas e rodeados por socalcos destinados à agricultura. Estes povoados conservam ainda hoje o seu caráter tradicional. Localizados nas zonas periféricas da Serra, povoados tais como Aboadela, Ansiães e Gondar, apresentam melhores acessibilidades e um maior crescimento nas últimas décadas, ao passo que as povoações mais isoladas, como Canadelo e Covelo do Monte, são detentoras de uma identidade mais preservada. No leste amarantino destacam-se quatro Aldeias Preservadas: Canadelo, Covelo do Monte, Murgido e Lugar de Rua (Aboadela), encontrando-se esta última também classificada como Aldeia de Portugal. (FERNANDES, 2016).
A nascente do Rio Ovelha está nas encostas ocidentais da Serra do Marão, mais precisamente na encosta de Pena Suar, em Aboadela, Amarante. O seu curso tem aproximadamente trinta e dois quilômetros, percorridos entre Amarante e Marco de Canaveses. O seu leito é alimentado pelas linhas de águas, ribeiros e rios de sua Bacia Hidrográfica, na qual se destaca parte da Serra do Marão e parte significativa da Serra da Aboboreira. A foz do rio Ovelha localiza-se em Fornos, Marco de Canaveses, onde deságua como afluente na margem esquerda do Tâmega. Em Aboadela, o vale do rio Ovelha apresenta uma assimetria nos declives em suas margens esquerda e direita: a vertente da margem direita apresenta-se mais abrupta do que a vertente da margem esquerda. Como anteriormente assinalado, as depressões são geralmente as áreas mais povoadas na região do Marão. No relevo do núcleo aboadelense há um “alvéolo” – uma depressão que apresenta uma forma oval, com um comprimento de três quilômetros e a largura máxima de quinhentos metros. O alvéolo desenvolve-se a partir do lugar do Carregal, e quem se posicione no plano alto, junto à Igreja de Aboadela, pode contemplar esta depressão com a ponte românica do Lugar de Rua em seu coração. Os taludes para a construção da moderna rodovia, entretanto, alteraram um pouco o cenário.
A área outrora denominada Ovelha do Marão foi uma antiga Beetria e posteriormente uma Honra (senhorio nobre) no reino português, tendo recebido de D. Sancho I o seu primeiro foral, à mesma época em que Ermelo, isto é, em abril de 1196. A antiquíssima e principal via utilizada na transposição da Serra do Marão tinha um traçado entre Amarante e Vila Real, e o troço entre Aboadela e a Veiga da Campeã era “a parte mais acidentada do percurso”, tendo a via de vencer um desnível de cerca de oitocentos metros. (BALSA, 2017). Ao lado ocidental do Marão, o núcleo de Aboadela era a porta de entrada, constituindo-se no principal ponto de acolhimento, apoio e informação para quem chegava àquela paisagem de montanha. A ponte românica sobre o rio Ovelha no lugar da Rua é um dos símbolos mais importantes da aldeia, e um dos mais destacados exemplos da arquitetura românica da região. Ela foi erguida no início do século dezessete durante a dinastia filipina, tendo sido construída em granito e juntas preenchidas com argamassas e seixos, e possui quatro arcos de volta perfeita de diferentes tamanhos. Na margem esquerda situa-se um cruzeiro do século dezessete, à entrada da ponte, junto ao parapeito à montante, tendo inscrição com a data de construção na face frontal. O símbolo é uma cruz latina lisa, de secção circular. Paralelo ao cruzeiro situa-se o antigo pelourinho de Aboadela. Em Portugal, os pelourinhos ou picotas (esta, a designação mais antiga e popular) dos municípios localizavam-se sempre em frente ao edifício da câmara e marcavam o local onde se aplicavam as penas. Os presos eram amarrados às argolas e açoitados ou mutilados, consoante a gravidade do delito e os costumes da época. Apesar de muitos pelourinhos terem sido destruídos pelos liberais a partir de 1834, visto os considerarem um símbolo de tirania, este permaneceu praticamente intacto. O fato de a localidade possuir um pelourinho demonstra o seu estatuto e importância durante o período medieval. O pelourinho de Ovelha do Marão é classificado como Imóvel de Interesse Público.
Gilson Santos em visita à antiga Câmara, Igreja Paroquial, Pelourinho e Cruzeiro na freguesia de Aboadela (“Santa Maria de Aboadela de Ovelha do Marão”)
A honra de Ovelha do Marão compreendia os territórios das freguesias de Canadelo e Aboadela. No século dezenove, Amarante recebeu muitas das freguesias dos concelhos que foram extintos na região. É, pois, nesta altura, que a honra de Ovelha do Marão foi destituída em 1836, e as freguesias de Canadelo e Aboadela foram anexadas ao concelho de Amarante, no qual permanecem até aos dias atuais. Aboadela experimentou, na primeira metade do século vinte, o ápice de seu desenvolvimento demográfico. Entretanto, tal como várias outras freguesias na Serra do Marão, no período censitário de 1864 a 1991, a freguesia atingiu, no fim do referido período, o menor número de habitantes. Até 2013, a freguesia contava com uma área de um pouco mais de vinte e um quilômetros quadrados, os quais eram demarcados com as vizinhas localidades de Canadelo, Sanche, Várzea, Olo e Ansiães. No âmbito da reforma administrativa nacional, realizada em 2013, Aboadela foi agregada às freguesias de Sanche e Várzea, para formar uma nova freguesia denominada União das Freguesias de Aboadela, Sanche e Várzea, da qual é sede.
Aquela “porta de entrada do Marão” é o crucial torrão nas origens lusitanas de nossa família. O casal mondinense, Manoel José Gonçalves dos Santos (1783-1852) e Clara Joaquina de Moura (c. 1793-1873), oriundo do “Fundo” de Vilar de Viando, nas imediações da ponte medieval sobre o Cabril, deslocou-se com os primeiros filhos para aquele lado ocidental da serra maronesa. No início da década de 1820, a família estabeleceu-se no Lugar da Rua, bem junto à ponte românica sobre o rio Ovelha em Aboadela, e ali nasceu a maior parte dos filhos. A primogênita do casal Santos, a minha quinta avó, casou-se naquela freguesia, onde estabeleceu descendência. A família do esposo era natural do lugar, com ancestralidade patronímica que se pode traçar documentalmente até a parte final do século dezessete, embora se saiba muito mais antiga. Tanto o casal mondinense que ali se estabeleceu quanto a minha quinta avó e o esposo, assim como haviam sido os ancestrais dele por várias gerações, foram todos sepultados na igreja paroquial de Aboadela, muitos no interior do templo e outros no adro. Com a inauguração do cemitério, localizado a trezentos metros da igreja paroquial, as ossadas, algumas centenárias, foram para lá transferidas, porém sem identificação. Ainda hoje, naquela necrópole, encontram-se lápides com os centenários sobrenomes que chegaram até nós aqui no Brasil.
Texto por Gilson Santos, em 10/03/2020. Integra um projeto mais amplo de genealogia e história familiar, do qual o autor faz parte ao lado de vários outros da família. Para contatos com o autor, clique aqui.
Obras consultadas: 1. BALSA, Carlos. “Via do Marão; Contributos para Identificação do traçado do antigo caminho do Marão”. In: Oppidium. Revista de Arqueologia, História e Patrimómio. N. 10/2017. Lousada: Câmara Municipal de Lousada, pp. 39-61. 2. CANCELA D’ABREU, Alexandre et. ali. “Contributos para a Identificação e Caraterização da Paisagem em Portugal Continental”. In: Coleção Estudos 10. 2004. Lisboa: Direção-Geral do Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano. 3. FERNANDES, José. “Aldeias de montanha: os problemas, as perspectivas e as propostas, vistos desde as serras da Aboboreira, Marão e Montemuro, no Noroeste de Portugal”. In: GOT, n.º 9 – Revista de Geografia e Ordenamento do Território. junho/2016. Porto: Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, pp.113-137; 4. MARQUES, Bernardo Serpa. Villes et Vilas Dans la Montagne du Minho (Nord-Ouest du Portugal), 1984, pp. 126-136. Online. 5. PEDROSA, Antônio de Sousa. Serra do Marão; Estudo de Geomorfologia. Porto: Universidade do Porto, 1993, 478p. 6. PEDROSA, Fantina Tedim. “Dinâmica Demográfica em Áreas de Montanha; A Serra do Marão”. In: População e Sociedade. N. 4/1998, Porto: Cento de Estudos da População e Família, pp. 395-409. 7. PEDROSA, Fantina Tedim. A Serra do Marão; O Homem, O Meio e as dinâmicas territoriais. Porto, 1999. Online. 8. QUINTAS, Andreia V. et al. Serra do Marão; o Futuro na Tradição ou a Tradição no Futuro, pp. 120-141. Online.