Memórias de um aluno interiorano
À memória de minha primeira professora, Ivanir da Cruz Corrêa (1948-2020)
A presença cristã no município de São Fidélis
No estado do Rio de Janeiro, a catequese romana de toda a região Centro-Norte fluminense foi realizada tardiamente, tendo início a partir do final do século dezoito. O antigo mapa por Manoel Vieira Leão, de 1767, identifica a região da seguinte maneira: “certão ocupado por Índios bravos”. Dez anos antes, o Marquês de Pombal expulsara os jesuítas do Brasil. Assim, a região interiorana entre as nascentes do Rio Macacu e as atuais terras pertencentes ao município de São Fidélis foi catequizada principalmente pelos monges capuchinhos – diferentemente das regiões litorâneas mais antigas, entre Campos e Niterói, nas quais a presença dos jesuítas fora marcante.
“Certão Ocupado por Indios bravos”. O Centro-Norte Fluminense em recorte das Cartas Topográficas da Capitania do Rio de Janeiro, Brasil, 1767, Manuel Vieira Leão (1727-1803), Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Brasil.
No município de São Fidélis, a missão católico-romana teve consequência permanente a partir de 27 de setembro de 1781, quando chegaram àquelas terras os frades capuchinhos italianos, Frei Vitório de Cambiasca e Frei Ângelo Maria de Lucca, estabelecendo, a partir daí, o aldeamento dos índios Puris e Coroados – os primeiros mais resistentes ao aldeamento. Desde então, formou-se uma região fortemente católica.
Dentro da chamada “cristandade”, os batistas foram o segundo grupo a se estabelecer no município. Aqui se destacam a liderança e esforços do missionário pioneiro no Brasil, Salomão Luiz Ginsburg (1867-1927). De origem judaica polonesa, o missionário, na última década do século dezenove, impulsionou, a partir de Campos dos Goytacazes, a evangelização das cidades, vilas e povoados próximos. Foi nesta época que a pregação evangélica chegou a São Fidélis, e, sob dura e desumana perseguição, as conversões surgiram. O missionário Ginsburg foi ferido, preso e conduzido a Niterói como se fosse um criminoso. De uma perseverança tenaz, voltou, porém, após cerca de dez dias, com as garantias legais para prosseguir na efetivação da obra que Deus lhe confiara. De início, a evangelização se concentrou em um local alugado e enfrentou enormes resistências. Em suas primeiras reuniões, os crentes foram insultados e sofreram forte intolerância e perseguição religiosa. Em meio ao contexto hostil, as conversões prosseguiram debaixo de literais pedradas. Os esforços foram coroados com a organização da igreja batista em 27 de julho de 1894, com sete membros, os quais ousadamente determinaram, sob proteção e por graça divina, sustentar bem alto a tocha do Evangelho de Cristo com a pregação das Sagradas Escrituras. O município tornou-se um dentre os que têm, proporcionalmente, maior presença de evangélicos batistas em todo o Brasil.
O interior do distrito de Pureza
Em algumas comunidades no município de São Fidélis o pioneirismo não foi católico romano, levando tais localidades a terem características próprias de uma realidade religiosa diferente. Destacam-se Ernesto Machado, bem como o interior do distrito de Pureza, onde as primeiras igrejas estabelecidas resultaram das missões e esforços evangelísticos dos batistas. Nosso foco dirige-se agora para esta última região:
A vila de Pureza é sede do terceiro distrito de São Fidélis; situa-se no sudoeste do território distrital, à margem do Rio Paraíba do Sul. O inteiro território compreendido pelo distrito situa-se ao norte do município, na região acima do complexo das chamadas Serra do Sapê e Serra do Penedo, por um lado, e da Serra do Timbó, por outro. O que ali, por seu destaque, se denominam “serras”, são na realidade morros e escarpas isoladas. Tais escarpas foram dissecadas pela ação fluvial e apresentam altitudes inferiores a quinhentos metros. Em rigor, o terreno é ondulado, formado predominantemente por colinas e morrotes. A hidrografia da região é caracterizada basicamente por canais e linhas de drenagem. Naquela região, o clima é predominantemente quente e seco, com um longo período de seca no inverno.
Todo o interior do distrito de Pureza teve o pioneirismo dos batistas. Evandro Freitas, historiador fidelense, escreve sobre a organização da mais antiga igreja batista da região – “Egreja Baptista de Tabua” – fundada aos 9 de novembro de 1912, tendo sido a quarta igreja batista organizada no município de São Fidélis.
Ao contrário de quase todas as comunidades de São Fidélis da época […] a primeira evangelização que ocorreu nas proximidades foi feita por missionários batistas. […] Chegaram batistas de Italva, na época Igreja Batista de Monção, junto com missionários americanos […] No início, os membros da Igreja se reuniam debaixo de uma árvore num local chamado “Sossego”, que ficava perto da atual comunidade […].
A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em sessão de 29 de agosto de 1972, votou uma moção sobre o quarto pastor da referida igreja, Salvador Borges, que a pastoreou por cinquenta e cinco anos e dois meses:
Tendo sido um dos desbravadores da região, pois quando lá chegou era tudo mata virgem […]. Educou, não só a sua família, mas praticamente toda a região. […] Chegou à localidade no tempo em que a mortandade grassava, não só pela malária, mas também pela criminalidade, conseguindo com trabalho, exemplo, bondade, desprendimento, firmeza e fé em Deus, reconduzir bandidos, pistoleiros e criminosos de toda espécie ao caminho do bem, mostrando um horizonte cristão para todos os moradores daquela região carente de fraternidade e amor.
Os meus bisavós, criados no catolicismo romano, foram batizados pelo pioneirismo da referida igreja no final da mesma década em que esta foi organizada. Já batizados, mudaram-se para aquela região interiorana em 1926, à época com quatro filhos menores. A minha bisavó nascera na vila, sede do distrito, no final do século dezenove… O irmão de meu bisavô e sua família vieram a residir alguns quilômetros acima. Todos tornaram-se membros daquela antiga igreja batista, e com os esforços diretos das duas famílias tiveram início as outras duas igrejas batistas, que lá permanecem pregando o Evangelho de Cristo até aos dias atuais.
As duas famílias referidas suscitaram uma descendência numerosa. Estas, assim como as outras famílias da região, defrontaram-se com um desafio: Como suplementar a formação educacional de seus filhos?
Educando os filhos em uma região pioneira
Como foi dito, a primeira grande influência na educação daquele interior foi a presença evangélica batista. Em termos de infraestrutura, as primeiras grandes conquistas da região foram as estradas vicinais – inicialmente muitíssimo precárias. Em termos de formação das próximas gerações, a segunda grande conquista foi a chegada da escola pública. Uma outra significativa conquista para a região foi a chegada da rede elétrica; esta, porém, (creia) só alcançou o lugar no último quartel do século passado.
Pensando em homenagear aquelas professoras que, denodadamente, dedicaram-se a educar aquelas gerações no interior do distrito de Pureza, quero aqui homenagear a minha primeira professora, que, na madrugada de hoje, faleceu após lutar com uma doença cruel.
De início, a Escola Matilde de Souza Mercador ficava numa construção bem simples, e possuía apenas duas salas com aquelas antigas carteiras duplas de madeira. Foi ali que cursei as duas primeiras séries, e antes de mim ali estudaram outros de nossa família. Posteriormente, a escola recebeu dependências novas, estabelecendo-se junto à propriedade de um casal de tios, e permanece neste mesmo local até hoje.
À época, as condições de transporte eram limitadíssimas. O ônibus somente passava por ali de retorno da cidade, no meio da tarde – e acrescente-se que os ônibus eram precaríssimos, os quais, por vezes, quebravam no trajeto. Então, a professora Ivanir fazia o seu trajeto de casa para a escola, de quase vinte quilômetros, valendo-se regularmente da “kombi do padeiro” ou do “caminhão do leite”. As três primeiras informações que eu possuía acerca dela: residia na cidade de São Fidélis; era cristã batista; e irmã de um tio querido, o qual se casara com uma das irmãs de meu pai.
O uniforme padrão do aluno era: camisa branca, com o brasão do Estado do Rio no bolso; shorts ou saias azuis; alguns alunos usavam sandálias e outros, mais afortunados, usavam “congas” – ocasionalmente algum aluno chegava descaço, o que logo resultava num contato com os pais por parte da direção da escola. Cada aluno levava um embornal de tecido costurado por sua mãe, e eram raros aqueles que tinham algum tipo de pasta específica. Os alunos traziam as suas “merendas” de casa, e havia uma boa solidariedade na hora do “recreio”, tão avidamente aguardado.
Assentados em pares, seguindo um mapa de sala por ordem alfabética, quando a professora adentrava ao “templo do saber”, todo silêncio era tácita e reverentemente conquistado, com um misto de orgulho, respeito e alegria por parte de todos os alunos. Toda a classe ficava em pé diante daquela personalidade importante que vinha da cidade. A professora Ivanir, sempre com a aparência muito bem cuidada, dizia: “Bom dia, meus alunos”, ao que todos, em coro, respondíamos: “Bom dia, professora Ivanir”. E assim nos assentávamos e as aulas tinham início, com regras muito claras de disciplina, claramente confirmadas em casa pelos pais.
Os dias de “prova” traziam alguma tensão. As provas eram escritas à mão, e reproduzidas no mimeógrafo a álcool – o qual era, para a época, um grande marco tecnológico. Quando o aluno recebia a prova, havia uma reação meio universal: aproximava a prova do rosto e sentia o cheiro do álcool, pois, afinal, álcool também não era um produto comum na casa de todo mundo.
Além do conteúdo programático
Compartilho, a seguir, três lições memoráveis aprendidas naquela escola, e peço permissão para referi-las na primeira pessoa:
* Certa ocasião, os alunos da classe inventaram uma brincadeira no recreio. Dois deles, utilizando algo parecido com um cabo de vassoura, puxavam um terceiro, que se arrastava pelo chão empoeirado da estrada. Porém, a brincadeira tinha maior graça se o aluno puxado pelos outros dois estivesse descalço. Talvez isto não faça o menor sentido para você hoje, mas creia, era exatamente assim.
Com os meus sete anos, eu saía de casa sozinho e caminhava um quilômetro de sandálias. Tive então a “brilhante” ideia: deixar as sandálias escondidas no bambuzal, seguir para a escola descalço, e depois, no retorno, calçá-las novamente, chegando em casa (quase) da mesma forma que saíra. Isto se repetiu por uns dias até que a professora chamou o meu pai. Este, ao ouvir a indagação da professora, corou de vergonha. Ao retornar à casa, aplicou-me uma lição extracurricular que me fez valorizar calçados até agora. Escrevo este texto com sandálias bem fixadas nos pés.
* A escolinha ficava ao lado de um estabelecimento comercial, do tipo denominado à época de “venda” – termo que atravessa os séculos em Portugal. O comerciante colocou uns peixes pequenos para secar ao sol, na parte externa, justamente ao lado da escola. Eram, em rigor, manjubas, que são peixes de água doce, um pouco parecidos com piabas, e que atingem, no máximo, cerca de doze centímetros de comprimento. À hora do recreio, as manjubas pareciam bem secas… Encorajados mutuamente, uns poucos colegas e eu comemos alguns daqueles peixes… Voltamos para a segunda parte da aula e passamos muitíssimo mal… Passamos pelo constrangimento de confessar o delito. Quando nos demos conta, estávamos deitados em cima de uma grande mesa, ingerindo óleo de rícino, providenciado pelas professoras com o “dono da venda”, a fim de induzir o nosso vômito. Nunca mais cheguei perto de óleo de rícino! E nunca mais apanhei comida que não me pertencesse. E passei a valorizar imensamente os alimentos bem cozidos.
* A professora Ivanir entregava as provas, cheirando a álcool, e oferecia as instruções. A primeira delas: “Antes de iniciar a prova, assine o seu nome completo”. Eu recebia a prova, e logo aproximava do rosto a fim de inalar o agradável cheiro do álcool que restava na folha, por vezes ainda um pouco úmida… Eu tenho um nome composto seguido de dois sobrenomes, isto é, o materno e o paterno. Entre o nome composto e os sobrenomes tenho o “de”. Cheirada a prova eu escrevia o meu nome completo, porém negligenciando o “de”. Dias depois, quando entregava a prova corrigida, a professora avisava: “Gilson, você novamente esqueceu o ‘de” de seu nome”. Infelizmente, a cena ainda se repetiu algumas vezes.
Um dia, porém, a professora entregou a prova de todos, menos a minha, informando que a entregaria ao final da aula. À hora da saída, disse-me ela: “Gilson, você vai permanecer aqui um pouco”. Empalideci e tremi. Secaram-me as mucosas da boca. A professora escreveu o meu nome completo, com uma letra bem desenhada, no topo de uma pauta dupla de caligrafia, não negligenciando o tão famigerado “de”. Então ela me instruiu a copiar o meu nome nas pautas da caligrafia, reproduzindo o que ela escrevera acima. Arrematou: “Escreva cem vezes”. Demorei bastante, mas concluí a tarefa. E sabe de uma coisa? Nunca mais esqueci o “de”. Também aprendi o valor da atenção, de não negligenciar alguns detalhes, da importância de uma escrita comunicante, da meticulosidade em atender orientações… dentre outras coisas que a gente nunca mais esquece, e que têm valor instrumental no cotidiano de nossas vidas.
Professor: Ser ou Estar?
Creia-me: É possível tornar-se amigo de uma professora assim, na qual se conjugam amabilidade e firmeza. E foi o que aconteceu. A professora casou-se e tornou-se esposa de pastor batista… Cursei teologia em um Seminário Batista e Ivanir foi, novamente, minha professora; lecionou-nos Educação Religiosa Infantil, tendo sido paraninfo da turma na formatura. Tenho comigo muito do material que ela nos ministrou em sala de aula. Quando foi redatora da revista “O Pequeno Missionário”, publicada pelas senhoras batistas do Brasil, ela, imerecidamente, após me encaminhar um roteiro de entrevista, publicou na revista um pouco de minha história pessoal, em linguagem vertida para o público infantil. Mais tarde a professora Ivanir formou-se em Psicologia, e guardo ainda o cartão que ela me enviou quando deu início à sua atividade em consultório psicológico.
No último dia 12 de julho recebi uma mensagem de minha primeira professora. Ela estava doente, numa batalha cruel com a enfermidade. Havia passado oito dias hospitalizada como resultado de algumas complicações com o câncer no fígado. Aguardava o resultado de um exame para averiguar o quadro de metástase. Cito parte da mensagem dela, tomando a liberdade de suprimir umas partes de cunho mais pessoal e imerecidamente laudatórias: “Pr. Gilson, tenho muita alegria em saber que aquele menino tímido, muito responsável, inteligente é […]. Aquela E. E. Matilde Mercador contribuiu com a formação […], pastor Gilson Carlos. Deus o abençoe sempre.”
Claro que discordo com parte da adjetivação feita por ela no que expus acima. Concordo apenas que fui um menino “tímido”. A parte que diz “muito responsável” o leitor pode julgar por si mesmo pelas três histórias que narrei acima… Porém, tomei a liberdade de citar aquela parte do conteúdo da mensagem por uma razão: Ela, humilde e sabiamente, estava ministrando-me a sua última lição. Em meio a dores e angústias da enfermidade cruel, que lhe ceifaria a vida aos setenta e dois anos, enviava-me uma bondosa palavra de encorajamento. Afinal, ela não esteve professora; ela era professora.
Na madrugada deste dia, no qual celebro mais um ano de vida, minha primeira professora partiu para casa. Um dom de Deus em minha história pessoal, assim como de alguns primos e muitos de meus colegas interioranos da escolinha na beira da estrada. Rendo aqui as minhas ações de graças a Deus por sua vida e magistério. E elejo-a como representante de meu louvor a Deus por todos aqueles abnegados professores deste país, que não estão professores. São professores que estão semeando o futuro em corações infantis. Tenho em minha casa uma pessoa assim… Deus possa encorajar a todos os professores em seu trabalho. Que o magistério brasileiro, especialmente aquele que atua na educação fundamental, seja cada vez mais valorizado, honrado e reconhecido, pela contribuição que busca oferecer às famílias na formação acadêmica e cidadã de seus filhos. Docentes que não apenas ensinam lições; plasmam a vida! Deus abençoe a todos.
Ivanir da Cruz Corrêa nasceu em São Fidélis, em 5 de janeiro de 1948. Casou-se em 6 de março de 1971 com o também fidelense pastor Walter Corrêa, igualmente meu ex-professor e que se fez presente no concílio que recomendou a minha ordenação. Deixou três filhos e oito netos. Nossas orações pela família da agora saudosa professora. Que o Senhor conforte a todos, honrando a sua memória e frutificando o legado precioso da querida mestra.
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[Texto por Gilson Santos. São José dos Campos, SP, em 18/agosto/2020. Integra um projeto mais amplo de genealogia e história familiar, do qual o autor faz parte ao lado de vários outros da família.]