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Um cristão pode evitar a Teologia, a Filosofia, a Psicologia e a Pedagogia?

St. Augustine (Agostinho de Hipona), 1480, Sandro Botticelli

St. Augustine (Agostinho de Hipona), 1480, Sandro Botticelli (Italian Early Renaissance Painter, ca.1445-1510), fresco, 152 cm × 112 cm (60 in × 44 in.), Church of Ognissanti, Florence, Italy.

Um cristão que imagine poder evitar a Teologia, a Filosofia, a Psicologia e a Pedagogia, penso eu, não refletiu séria, ponderada e criticamente nas implicações deste seu ponto de vista. “Quem sou eu? De onde vim? O que estou fazendo aqui? Para onde vou?” Uma filosofia não poderá responder a questões fundamentais sem remeter para compreensões teístas, ateístas, agnósticas, deístas, naturalistas, humanistas…  Como determinar o critério do que é verdade? Existe a possibilidade de encontrá-la? Como se dá a consciência que o sujeito tem do objeto? Como o ser humano conhece, e, em rigor, o que é o conhecimento? Conhece-se a tudo de igual maneira? O que dizer sobre o bem e o mal? E acerca do bom e do mau? Existem absolutos éticos? O que é, e como julgar, o belo, o feio e o sublime? O que é a existência humana? Se você é cristão, logo perceberá que o pretendido divórcio entre Teologia e Filosofia, proposto em alguns momentos da história ocidental, não poderá ser levado às últimas consequências, embora se possa legitimamente propor pertinentes especificidades dos respectivos campos e objetos. Já houve um tempo, entretanto, em que, se um cristão pronunciava a palavra “filosofia” positivamente, tal já era motivo suficiente para colocar a sua fé em suspeição. No sétimo capítulo de sua De praescriptione haereticorum, Tertuliano já indagava: “O que tem Atenas a ver com Jerusalém? Que acordo há entre a Academia e a Igreja? E entre os hereges e os cristãos?”

Até o século dezenove, as questões psicológicas em geral eram tratadas exclusivamente segundo o método teológico ou pelo filosófico, ou em alguns contextos, por ambos. Em termos bem simples, as psicologias são legatárias de alguma filosofia. Aliás, acrescente-se, muitas das dificuldades enfrentadas nas interlocuções com as psicologias residem, na realidade, numa dificuldade com as questões “maternas” no contexto da Filosofia. Desde antigas escolas, como a de Tertuliano e a de Orígenes, que as relações entre Cristianismo e Filosofia nem sempre encontram um diálogo muito maduro e equilibrado. Que é o homem? Como ele chegou até aqui? Que é a verdade? Que é o bem? Como situar a fé no contexto da racionalidade? Fé e realidade se excluem? A religião é vocação antropológica inerente, ou trata-se de alienação, de ignorância, de algum entorpecimento do espírito? Em síntese, questões fundamentais de conflitos experimentados com a Psicologia, na realidade são, antes de tudo, impasses mal resolvidos com a Filosofia ou com a Teologia. Mas os impasses com a Teologia e Filosofia podem parecer, a um mais ingênuo, inofensivos. “O teólogo está no mosteiro ou seminário, e o filósofo na torre de marfim”, supõem alguns. Assim, muitos cristãos têm se “dado ao luxo” de ignorar teólogos e filósofos. Mas quando os ditos impasses chegam à Psicologia definidamente ganham a evidência de crucial relevância no cotidiano. Afinal, as formulações psicológicas estão moldando a vida das pessoas. As propostas terapêuticas seculares estão competindo pelas “almas” com o sacerdócio religioso, inclusive com a poimênica cristã. E estas relações não raramente têm sido tensas. Curiosamente, as mesmas três principais escolas que se expressaram no período patrístico, com relação à Filosofia, manifestam-se agora em relação à Psicologia…

Toda abordagem em psicologia, assim como toda abordagem em aconselhamento, será legatária de algum sistema filosófico. Em termos de pensamento formal, a relação da Psicologia com a Filosofia é como a de uma filha com sua mãe. Entretanto, na segunda metade do século dezenove, aquela moça estava cheia de pretensões e disse à sua mamãe Filosofia: “Mãe, eu sou muito grata por todo ensino que recebi de você. Eu vou guardá-lo. Porém, agora vou construir a minha própria casa, e vou ‘cuidar das almas’ sem depender absolutamente de você. Vou utilizar meus próprios métodos, ainda que debaixo da instrução fundamental que recebi de você. Ainda assim, de vez em quando pretendo fazer-lhe uma visita!” E a mesma moça pretensiosa pensou acerca de sua avó Teologia: “Acho que vovó está sofrendo com Mal de Alzheimer”. Não é difícil compreender os porquês de as relações entre cristãos e as psicologias nem sempre serem muito amistosas… E também logo se percebe que os embates serão maiores tanto mais os conceitos psicológicos se constituírem em proposta e instrumental psicoterápico. De fato, as maiores inquietações de alguns cristãos situam-se justamente na passagem das psicoLOGIAS para as psicoTERAPIAS.

As análises críticas, saliente-se, são claramente bem vindas e até mesmo muito necessárias. Acrescente-se: São fundamentais. Mas, enfim, existe algum aspecto da vida em que se pode evitar uma psicologia? Definitivamente, não! Claro, ela pode ser não refletida, não verificada, não testada, não sistematizada… Como explicar o comportamento humano? Ele é causado, eliciado, condicionado ou determinado? É inteiramente livre ou está sujeito a determinações? Qual a influência do meio? O ser humano é inteiramente produto do meio? Como ele percebe a realidade? Como sente? Como se processam os seus pensamentos? E os seus sentimentos? As suas condições afetivas têm impacto na sua condição física? Dá-se o mesmo vice-versa? Como se perfaz tal relação? A pessoa humana possui apenas acervo consciente ou também inconsciente? O indivíduo se comporta exatamente igual quando está sozinho, ou em pequenos grupos ou em multidões? Todos aprendem de uma mesma maneira? Um bebê chora sempre pelo mesmo motivo? O que motiva esse comportamento e quais as suas diferentes funções? Qual o seu nível de consciência? Como ele adquire sua identidade? Como percebe o tempo e o espaço? Como passa a raciocinar e a formular juízos? Como se dá a linguagem? A linguagem imprime a personalidade? Em que medida? As “constituições”, “temperamentos” ou “personalidades” são idênticas? O que os diferencia? O que é a inteligência, e qual a sua arquitetura? Há distorções cognitivas? De quais tipos elas são? O que é mais determinante: a hereditariedade ou a experiência? Experiências históricas podem ter consequências psíquicas permanentes? Os seres humanos se transformam à proporção em que se desenvolvem? Uma criança de quatro anos é igual a uma de oito? Um menino e um ancião temporalizam-se de igual maneira? Quais as semelhanças e diferenças? E as perguntam se multiplicam ad infinitum

O ser humano é definidamente psicológico. Em todo tempo! Quando hoje levei meu carro para lavar, o dono do lava-jato me propôs uma higienização de veículo ao custo de quarenta e nove reais e noventa e nove centavos. Muito provavelmente ele não sabia, mas estava praticando uma psicologia, isto é, já estava “prevendo” ou “eliciando” uma resposta ou comportamento. Até enquanto durmo não consigo evitar uma psicologia. Quando o sábio observou que “a resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira” (Pv 15.1); que “o coração alegre aformoseia o rosto, mas com a tristeza do coração o espírito se abate” (Pv 15.13); e, “como maçãs de ouro em salvas de prata, assim é a palavra dita a seu tempo” (Pv 25.11), apenas para citar uns pouquíssimos exemplos… Ou, quando Jesus Cristo disse que “o homem bom do bom tesouro do coração tira o bem, e o mau do mau tesouro tira o mal; porque a boca fala do que está cheio o coração” (Lc 6.45); ou, quando afirmou, em contraposição à opinião dos fariseus e escribas, que “de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Ora, todos estes males vêm de dentro e contaminam o homem” (Mc 7.21-23); ou, quando diante do cálice de ira, agonizou no Getsêmane clamando “agora, está angustiada a minha alma”, “a minha alma está profundamente triste até à morte” (Jo 12.27; Mt 2.15)… Em todas estas situações, conceitos psicológicos estavam sendo expressos; havia ali uma psicologia pressuposta e afirmada.

Infelizmente, em alguns contextos evangélicos, este assunto tem sido pautado por muita ignorância e simplismos. Carecemos de boas reflexões, inclusive com o concurso de boas formulações das teologias bíblica e sistemática. E como carecemos de boa leitura de filósofos cristãos! Seja como for, não há como sustentar um ministério evangélico reformado coerente quando se formula, como princípio, a rejeição ao diálogo crítico com as ciências e também com as artes. E, tristemente, há quem em nosso meio parece destituir qualquer possibilidade de investigação científica da pessoa humana que permita ao descrente e crente algum nível de convergência. É como se propusessem que a realidade da pessoa humana, embora complexa, escapa inteiramente ao domínio de leis estabelecidas pelo Criador. Ou seja, tem havido nos meios evangélicos quem exclua inteiramente a formulação de juízos sobre a pessoa humana que não se situe estritamente nos domínios da revelação especial. É necessário enfatizar que isto pode ser tudo, menos a maneira cristã e bíblica do sábio fazer ciência.

Na matriz de todas as pedagogias está alguma psicologia. Chega a ser muito interessante que os grandes teóricos de pedagogias eram, antes de tudo, psicólogos. Em nossos dias alguma psicologia do desenvolvimento estará presente em todas as nossas formulações pedagógicas mais comuns, inclusive nos projetos ministeriais corriqueiros das igrejas cristãs. “Realizo esta atividade somente com homens?” “Ou faço uma classe mista de homens e mulheres?” “Há sentido em ter-se um ministério somente para jovens?” “Devo retirar as crianças do culto público e direcioná-las a um ‘culto infantil’?” “Devo pensar em ministérios específicos para a ‘terceira idade’?” “Que tipo de linguagem devo usar ao pregar para este público específico?” “Devo utilizar alguma literatura específica para as diferentes faixas etárias?” “Devo pensar em classes graduadas?” “Que tipo de especificidade deve ter o ministério com os deficientes auditivos? Eles apreendem a realidade da mesma forma que os ouvintes?” “Que impacto tem a música no processo de adoração e aprendizagem, assim como nas respostas emocionais da pessoa no culto?” Novamente as perguntas se multiplicam ad infinitum… E chegarão em sua casa, à hora de educar os seus filhos e netos. “O que devo ensinar ao meu filho em casa?” “Que implicações terá a presença de meu filho numa escola?” “O que seria fundamental à sua formação?”

Enfim, Teologia, Filosofia, Psicologia e Pedagogia fazem parte do seu dia a dia. Quer você queira ou não; quer reflita sobre elas ou não. Não há como evitá-las. Em termos simples, segundo entendo, um cristão supor que pode evitar uma teologia, uma filosofia, uma psicologia e uma pedagogia é uma ilusão pueril, tomada de certa ingenuidade. Um ponto de vista que, mais cedo ou mais tarde, se revelará conceitualmente inconsistente. Não existe maneira de um cristão escapar à Teologia, à Filosofia, à Psicologia e à Pedagogia. A questão é somente saber se elas serão conscientes ou não, se verdadeiras ou falsas, boas ou más, confusas ou claras, precisas ou imprecisas… Quem diz recusar algumas delas já está professando alguma, embora sem encontrar-se consciente acerca dela. E isto, muito tristemente. No fim das contas, para um cristão evangélico, que se paute pelo conceito da autoridade final do governo soberano e universal de Jesus Cristo, mediante as Escrituras Sagradas, a grande questão será saber se sua Teologia, e sua Filosofia, e sua Psicologia e sua Pedagogia, tanto quanto lhe esteja ao alcance discernir, estão cativas à mente de Cristo e expressam o seu senhorio, não colidindo com os valores de seu reino.

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