“Nuda Scriptura” e Suficiência das Escrituras
A Theological Debate (Um Debate Teológico), 1888, Eduard Frankfort (Dutch Jewish Academic Painter, 1864-1920), Oil on canvas, 81 x 100 cm (31.9 x 39.4 in.), Private Collection.
Os evangélicos reformados reconhecem diversas autoridades em suas vidas. Quer se trate dos pais, do governo, da igreja, ou tradições (como aquelas encontradas nos credos e confissões de fé). Pela doutrina de Sola Scriptura eles não pretendem indicar que não têm quaisquer outras autoridades ou até mesmo fontes de revelação, mas que a Escritura por si só é a final e a única fonte infalível. A Bíblia, que os evangélicos reformados assumem como a suprema e final autoridade, contém sessenta e seis livros, sendo trinta e nove do Antigo Testamento e vinte e sete do Novo Testamento. Esta coleção é muitas vezes referida como o “Cânon” das Escrituras. “Canon” (gr. Kanon) é uma palavra que significa “regra” ou “vara de medir”, pois antigamente o padrão de medida era uma cana, uma vara. Assim, nesta cosmovisão, o cânon das Escrituras, ao mesmo tempo em que satisfaz plenamente uma medida, é também o padrão que mede toda a convicção do cristão. Para os cristãos legatários da Reforma, a Escritura é a norma normanda (“norma determinante”) e não a norma normata (“norma determinada”) para todas as decisões de fé e vida. Somente a Escritura é a suprema autoridade em matéria de vida e doutrina; só ela é o árbitro de todas as controvérsias. Trata-se do último tribunal de recursos. Ou seja, para os herdeiros da Reforma, não há nenhuma autoridade acima da Bíblia. A fé cristã reformada crê que Deus se revelou de forma especial pelas Escrituras, cujo centro é a pessoa de Cristo. E na redenção operada por Cristo tem-se o contexto da graça especial. Mas as Escrituras também declaram que Deus se revelou na chamada “revelação geral”, e que neste contexto se encontra a “graça comum”. “Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos” (Sl 19.1).
Conquanto a convicção fundamental evangélico-reformada é que a Bíblia em si mesma não é falível, eles procuram se lembrar que as interpretações privativas da Bíblia eventualmente podem ser. Ninguém pode escapar de sua própria falibilidade. Esta é uma realidade que nos deve conduzir à humildade, e a ler a Bíblia junto da Igreja (os irmãos do passado e do presente), e também nos estimula à prudência. Será que todos os pregadores que eu ouvi acertaram em tudo quanto disseram acerca da Escritura? Será que mesmo os melhores pregadores e intérpretes são infalíveis? Assim, a crença evangélico-reformada na Suficiência das Escrituras não pode ser um sistema cego e hermético, e que prestigie um individualismo arrogante. Em Atos 17.10-11 registra-se que Paulo e Silas chegaram à cidade macedônia de Beréia, e dirigiram-se à sinagoga judaica. Estes judeus bereanos foram “mais nobres do que os que estavam em Tessalônica, porque de bom grado receberam a palavra, examinando cada dia nas Escrituras se estas coisas eram assim”. Esta é uma clara ilustração e um exemplo prático e louvável da aplicação do princípio de Sola Scriptura. Os bereanos foram elogiados por testar e confrontar o ensinamento dos apóstolos contra o testemunho das Escrituras.
Uma aplicação correta do princípio de Sola Scriptura não exclui uma consideração crítica das proposições científicas. Um clássico exemplo foi o desafio de Copérnico e o heliocentrismo. A Bíblia menciona que, no tempo de Josué “o sol parou”, fala acerca dos “quatro cantos da terra” e refere-se às “colunas da terra”. Observe como este tipo de linguagem pode conduzir a um literalismo que será falho. Nos dias de Copérnico, muitos rejeitaram as suas teorias com base neste tipo de interpretações literalistas pelo magistério eclesiástico. O geocentrismo era doutrina assumida em bases religiosas, como se fora uma verdade divina. Conquanto naquele tempo a Igreja Católica Romana aceitasse essencialmente o geocentrismo aristotélico, o modelo de Copérnico influenciou muitos cientistas renomados que viriam a fazer parte da história, como Galileu e Kepler, que assimilaram e melhoraram a sua teoria. Portanto, o conceito de Sola Scriptura não descarta por completo aspectos relevantes da história e do conhecimento humano, mas assume que, quando há divergências entre aqueles e a Escritura, deve-se afirmar que esta última tem a primazia, e, diante do desafio imposto pela divergência, confrontar a Escritura com a Escritura para testar se as nossas interpretações se encontram falíveis. Os reformadores e posteriores intérpretes das Escrituras perceberam que não havia conflito entre as Escrituras e as descobertas daqueles cientistas; o que era falível era a interpretação oficial da Igreja. Igualmente, como foi dito, a teoria de Copérnico tem sido revisada e recebeu a contribuição posterior de outros estudos experimentais.
Nuda Scriptura não é uma posição formal, mas a designação pejorativa de uma prática. Ela representa a posição de alguns evangélicos ou fundamentalistas que não compreendem Sola Scriptura, crendo que este conceito significa que o lugar ideal para os crentes encontrarem autoridade e interpretarem a Escritura é fazê-lo em um vácuo histórico e cultural, desconsiderando qualquer contexto ou tradição que possa influenciar e vincular o seu pensamento. Historicamente, este modelo de Nuda Scriptura conduziu à rejeição de credos e confissões de fé. Tal posição já tem sido criticada como simplista e arrogante por ignorar o fato de que é impossível interpretar no vácuo. Franklin Ferreira relembra que “a ala radical da Reforma, os anabatistas holandeses e alemães no século dezesseis, alguns puritanos congregacionalistas norte-americanos no século dezessete, e especialmente evangélicos fundamentalistas norte-americanos no começo do século vinte, ressignificaram o princípio de Sola Scriptura, reinterpretando-o como Nuda Scriptura (‘Escritura por si só’). Esta posição, que se tornou muito influente entre evangélicos na América Latina, adotou a ideia de que a Escritura é total e completamente suficiente como única fonte de doutrina e prática cristãs, e descartou assim o ensino da tradição cristã e mesmo contribuições precedentes de outras áreas de saber. Para estes, não há nenhuma autoridade exceto a Bíblia.” Assim sendo, cada pessoa ou comunidade pode ser conduzida à Bíblia sem, em qualquer momento, remeter-se ao passado e ao contexto cristão. Claramente, esta posição abre as portas para o individualismo, subjetivismo e caos teológico. O modelo Nuda Scriptura veio a reproduzir-se na máxima “nenhum credo senão a Bíblia”. Certamente há uma diferença entre o debate acerca dos usos dos credos e confissões de fé, e o debate propriamente dito acerca da legitimidade ou propriedade de se elaborar e sustentar um credo. O debate sobre o uso de credos e confissões de fé – “Em que contextos ou em que situações?” – rege-se pela regra da “prudência cristã”, e o uso prático pode diferir de igreja para igreja, de ministro para ministro, ou de uma comunhão de igrejas para outra. Já o modelo anticredalista e anticonfessionalista, por si mesmo, é, segundo entendo, inteiramente equivocado.
Faz-se necessário, contudo, ir além. Conquanto o modelo Nuda Scriptura tenha sido historicamente associado ao anticredalismo ou anticonfessionalismo, sou de opinião que ele possui implicações muito mais cruciais e profundas do que pode parecer à primeira vista. Analisado internamente, o modelo Nuda Scriptura tem na rejeição ao símbolo de fé apenas a ponta final do novelo. A grande pergunta é: Que tipo de raciocínio está moldando a justificativa para a rejeição do credo? Assim, sou de opinião que este modelo não é apenas “não recomendável”. Trata-se na realidade de uma impossibilidade quanto à coerência. Considere, apenas como um breve exemplo, uma confissão de fé básica: “Eu creio que Deus, o Pai, enviou o seu Filho, o qual morreu numa cruz em meu lugar.” Esta sintética proposição é inteiramente bíblica. Alías, ela reside no coração do próprio Evangelho. Sem ela, todo o Cristianismo se degenera até perder-se num imenso vazio. Analisemos agora essa breve confissão de fé:
* “Eu” – Quem? Como adquiro este senso de identidade pessoal? Como chego a esta consciência de mim mesmo? Esta consciência pode ser firme se alicerçada apenas na razão? Ou constatada apenas pela dimensão sensorial? Ela pode ser ancorada sem o meio, e sem a percepção sensório-motora? A identidade do “eu” pode ser assumida sem teoreferência? O que me transmite, no tempo e no espaço, a variável constante que me permite dizer: “Eu sou?”. Este “self” (como em língua inglesa) é o mesmo “ego”, de raíz grega, e repetido em todo tempo por conta da influência da metapsicologia freudiana? Já aqui, frente ao fenômeno de minha subjetividade, ver-me-ei confrontando-me com formulações teológicas, filosóficas e psicológicas.
* “Creio” – O que é crer? Como se crê? Como resultou esta fé? Que dimensões do ser humano estão envolvidas no ato de crer? Apenas a “notitia”, isto é, o conhecimento, o qual aponta para o fato de que a fé genuína deve crer em alguma coisa? Em outras palavras, a fé deve ter conteúdo intelectual? O que é intelecto? A fé precisa ser inteligente? O que é “inteligência”? A fé, ademais, inclui o “assensus”, isto é, o consentimento, o parecer favorável? O que me tornou favorável? Esta fé, então, corresponde à minha necessidade? Como identifico tais necessidades? Isto já envolve as dimensões cognitivas e conativas, isto é, mobilizam a cognição e a vontade? Aliás, o que são a cognição e a vontade? A fé pode ser meramente um empreendimento intelectual? A fé também inclui a “fiducia”, isto é, a confiança? Existe verdadeira fé salvífica sem a confiança? A confiança é uma realidade e processo psíquico? Esta confiança é pessoal? Implica necessariamente numa dimensão afetiva? O ser humano é antes de tudo um ser cognitivo ou afetivo? Os nossos afetos estão na base de nossas convicções, ou podemos suspender a nossa base afetiva no processo de conhecimento?
* “Deus” – Aqui definidamente vamos precisar consultar a Teologia. E ademais, observe que o substantivo “Deus” não é a forma do idioma original. Este vocábulo português tem sido utilizado para traduzir alguns substantivos encontrados nos originais bíblicos hebraico e grego. “Deus”, porém, foi um substantivo cunhado numa cultura não cristã, tendo origem, até onde conseguimos acompanhar, na língua latina. E assim, embora o nosso “Deus” seja o mesmo que está revelado na Bíblia, a forma como o nosso “Deus” chegou a corresponder aos substantivos hebraicos e gregos só nos é informada por meio de consulta à história e à etimologia, com estudos linguísticos. Isto é suficiente para nos indicar que, para manter o seu sentido fiel em uma determinada cultura, eu precisarei recorrer aos conceitos daquela cultura, vertidos em linguagem. Assim, isto exigirá de mim um olho na Escritura e outro na cultura.
* “Pai” – Nas sociedades humanas, “pai” é um conceito que necessariamente precisa ser entendido à luz da antropologia e sociologia. “Pai” significa a mesma coisa em todo lugar? O que a palavra “pai” significa na teologia bíblica e em nossa cultura? Os conceitos nas duas esferas se correspondem exatamente? Quais as dimensões emocionais desta palavra? A que simbologia ela remete?
* “Enviou” – O verbo enviar expressa uma ação intencional, um ato pessoal. O que é uma pessoa? De onde derivamos este conceito de “pessoa”? Ele é ao mesmo tempo teológico, filosófico e psicológico. “Deus enviou o seu Filho” é o ato intencional de uma pessoa. O que é a intenção? Isto nos diz, então, que uma pessoa tem auto-determinação e auto-orientação? O que isto significa? Podemos atribuir o substantivo pessoa tanto à divindade quanto aos seres humanos? “Ser humano” e “pessoa humana” são conceitos idênticos? E desde quando as três pessoas da Trindade têm sido referidas como “pessoas”? Qual a origem desta palavra em português? Que palavras, por exemplo, Tertuliano usou originalmente, em seu idioma, para afirmar a personalidade das três pessoas da Trindade? E o que é Trindade? Trata-se de um vocábulo bíblico? E o que é personalidade?
* “Filho” – E assim chegamos ao “Filho”. Que filho? Quem? Em nossas culturas, “filho” é um termo sociológico e antropológico, que também precisa ser confrontado com a Biologia e o estatuto jurídico oferecido pelo Direito. Pelo exame bíblico seremos, então, conduzidos à pessoa histórica de Jesus Cristo. Quem é Jesus Cristo? Deus? Homem? E, para remeter ao que foi dito antes, trata-se de uma pessoa? Difere do Pai? Como se relaciona com a Trindade? O conceito de filho tem dimensão psicológica? Tem efeito simbólico, e portanto de abstração no psiquismo humano? Quando eu penso em meu filho, eu o sinto tal quando penso em Napoleão Bonaparte ou no presidente Barack Obama? Ah, sim, eu o amo. “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele.” (Jo 3.16-17). Eu sou um “filho de Deus” no mesmo sentido em que se diz que Cristo é seu Filho? O que significa “filho unigênito”?
* “Morreu” – Morte. Clinicamente, o que é a morte? Como ela acontece ao ser humano? Quando ela pode ser assumida como um fato? Como dizer que o Filho morreu? O que isto significa? Que implicações tem a morte para o corpo, a mente e o espirito? Cristo é Deus? Deus morreu? E o que aconteceu depois que Cristo morreu?
* “Cruz” – Você não pode entender plenamente a realidade da cruz sem recorrer à história não Bíblica, sem entender a história não judaica. E não pode entender a cruz sem entender o estatuto jurídico deste tipo de pena de morte no Império Romano. Aliás, que “Império Romano”? O que é um Império? A cruz tinha algum significado simbólico? Quem era morto na cruz? Que impacto emocional tinha o simbolismo da cruz? “Impacto emocional” e “significado simbólico” são conceitos psicológicos?
* “Em meu lugar” – O que isto significa?! “Em favor de”? “Em benefício de”? Tem o sentido de substituição? Como entendemos psiquicamente a ideia de substituição? Dependemos da apropriação preliminar da Física? Pressupõe-se uma espacialidade? Pressupõe-se alguma temporalidade? Aliás, como intuímos o tempo e o espaço? São realidades físicas e psíquicas? A morte de Cristo foi “vicária”? O que isto significa? Por que? Evoca a ideia de pecado? O que é pecado? Em que resulta a morte substitutiva de Cristo? Em que ela resultou para mim? Como me tornei o objeto desta ação de Deus? O que significa, aliás, ser objeto da ação de um determinado sujeito?
Talvez alguém replique: “Eu não preciso responder a todas as questões que foram propostas a fim de entender aquela sucinta e clara declaração de fé.” Estendidos os devidos respeitos à sua objeção, peço a sua consideração, entretanto, para dois fatos. Em primeiro lugar, talvez você julgue que não precise responder a tais questões porque as respostas a elas já lhe são conceitos dados, já assimilados por você, a ponto de parecerem naturalmente pressupostos ou puro senso comum. Mas pensando daquela forma você não estará desconsiderando o seu contexto e a sua historicidade, bem como a da cultura na qual você encontra-se inserido? Será que um indígena pré-colombiano teria todas essas respostas que você assume como “dadas”? E leve em consideração que você e o tal homem pré-colombiano já compartilham também de realidades em comum, como por exemplo, a sua humanidade. Em segundo lugar, talvez você considere desnecessário ampliar o contexto de significância da confissão pois não problematizou ou refletiu suficientemente em suas proposições. E se tal for o caso, isto não poderia ser uma desculpa para uma proposta antiintelectual e antiteológica? E você seguramente entende que aquelas estão longe de ser todas as perguntas que poderiam ser levantadas…
Em resumo – e perdoe-me tal ilustração tão gráfica e rudimentar – o modelo Nuda Scriptura julga, de forma bastante simplista a meu ver, que aquela bíblica confissão de fé (“Eu creio que Deus, o Pai, enviou o seu Filho, o qual morreu numa cruz em meu lugar“) pode ser significada num sistema fechado, num vácuo. No fim das contas, aquela única e sintética confissão de fé, vertida em nosso abrasileirado idioma lusitano, que tem suas matrizes gregas e latinas, resulta de todo um processo multidisciplinar. E isto me sinaliza que, para interpretar a Escritura, eu precisarei de uma Ciência da Interpretação. Assim, parece-me que a proposta Nuda Scriptura tem constrangedoras implicações lógicas, que se situam para além do anticredalismo puro e simples. No fim das contas, pelo que concluo, este modelo fechado rejeita a interdisciplinaridade, o que faz da Teologia uma impossibilidade. Entendeu o meu ponto? A proposta Nuda Scriptura, querendo defender um biblicismo estrito, no fim das contas não é rigorosamente bíblica. E ao recusar-se ao exercício interdisciplinar, inviabilizando a Teologia, quando se diz “a Bíblia sozinha“, ou “a Escritura por si só”, também inviabiliza-se qualquer possibilidade para uma abordagem cristã em Filosofia, em Psicologia e em Pedagogia, e isto para dizer o mínimo. Ao que me parece, por aquela implicação, a posição Nuda Scriptura reduz-se em termos lógicos ao absurdo. Insustentável do ponto de vista prático, é contraditória e geralmente reativa. Só se vive interdisciplinarmente, pois se vive na realidade; e a disciplina é apenas um recorte para a realidade. E como os movimentos reativos encontram-se mais propensos a esposar conceitos puristas, ideais, sem tensões, logo sem as problematizações que a realidade impõe, é bastante comum ver alguns proponentes dessa posição, contraditoriamente, abrindo-se à interdisciplinaridade pela “porta dos fundos”. Mas demonstrar isto em variadíssimos exemplos seria tema para um outro post, em um outro tempo, que, aliás, anda me faltando.
Leia também: Um cristão pode evitar a Teologia, a Filosofia, a Psicologia e a Pedagogia? e Um cristão pode evitar a Teologia, a Filosofia, a Psicologia e a Pedagogia? (II)