Entre desculpas, retratações e pedidos de perdão
The return of the prodigal son (Le retour de l’enfant prodigue), 1782, Augustin-Louis Belle (French Academic Painter, 1757-1841), oil on canvas, 167 x 123 cm, Musée des Beaux-Arts (Palais des Beaux-Arts de Lille), Lille, France.
Você é capaz de lembrar a última vez em que pediu perdão com uma objetividade simples e desimpedida? Ou se lembra de alguém que o tenha feito, seja em relação a você ou a alguma outra pessoa? Não estou me referindo ao apego aos direitos próprios, de tal forma que se fique “cobrando” ou “exigindo” reparações. Longe disso. Deixe tentar me fazer entender.
“Pedir desculpas” não é, em strictu sensu, o mesmo que pedir perdão. A gente apresenta desculpas quando as tem. Dias atrás eu consultei minha agenda telefônica, liguei para um número, e do outro lado alguém atendeu. Eu mencionei o nome de quem procurava e a pessoa disse não conhecer. Li o número do telefone para ela, e ela confirmou ser aquele mesmo. Entretanto, por alguma razão aquele não era o número da pessoa com quem eu desejava falar. Talvez houvesse sido no passado… Bom, o que fiz foi apresentar minhas desculpas, o que a pessoa do outro lado educadamente compreendeu, e nos despedimos. Ela e eu reconhecemos que este tipo de situação acontece com frequência, e que eu estava desculpado diante do episódio. Des+culpar pode assumir, assim, o sentido de assinalar a ausência de culpa. É justificar-se.
Entretanto, segundo entendo, pedir perdão é algo que vai além. Pois neste caso há uma consciência clara de que não se tem uma desculpa para apresentar, e ainda que houvesse algo próximo disso, já não seria desejável. O que se espera é justamente a renúncia de qualquer desculpa ou argumento. Poucas coisas são tão patéticas quanto estar diante de alguém que decididamente deveria preferir logo o caminho do pedido de perdão, mas que fica multiplicando argumentos ocos e pretextando desculpas evasivas e incômodas, não é verdade? Em alguns casos isto chega a ser tão desconcertante, que teria sido preferível àquela pessoa ter se mantido calada. O que se espera é aquele passo decidido e bem resolvido de chegar ao outro no momento oportuno, e com a atitude e a palavra apropriada. É, entretanto, algo muito difícil, pois se esbarra em nossa arraigada fortaleza de orgulho próprio. O perdão é sempre uma via de mão dupla, pressupondo uma ação da qual participam dois lados. Alguém disse que o perdão precisa ser pedido e oferecido. Do contrário, alguma coisa fica faltando. E não se pode esperar muito de um relacionamento no qual a sujeira é sempre varrida para debaixo do tapete. Ainda que digamos para nós mesmos que está tudo bem, sabemos que há uma razoável distância entre o que dizemos “intelectualmente”, e aquilo que o nosso coração sustenta.
Uma frase que tenho ouvido com alguma frequência é: “Por favor, perdoe qualquer coisa aí.” Perdoar “qualquer coisa”! Todos nós sabemos intuitivamente o que se pretende com este tipo de frase pronta. Pede-se perdão por tudo, ao mesmo tempo em que não se pede objetivamente por nada. A pessoa pigarreia com um rubor fervente, se contorce amargando o seu orgulho ferrenho, e sem o menor traquejo, sai com uma dessas. É, por assim dizer, o “jeitinho brasileiro” de pedir perdão. No fundo, porém, um jeitão bem cúbico, digamos assim. A pessoa consegue destravar a alma até certo ponto, pois percebe o mau jeito em que alguma coisa ficou, porém assume um atalho mal resolvido. Com tais vias indiretas, não há o famigerado tête-à-tête, aquele olho no olho, digno das pessoas maduras e que obtiveram graça para as elaborações necessárias. Desta forma, a palavra, material básico dos relacionamentos e matéria prima das melhores construções sociais, é descaradamente evitada.
Dias atrás ouvi alhures uma canção de um cantor mineiro na qual a letra, em certa altura, diz que “românticos, mesmo certos, vão pedir perdão”. Antecipo-me em dizer que o romantismo tão bem descrito pelo compositor não é exatamente a saída. Pedir perdão, embora compreendendo-se acertado e justo, não me parece uma saída autêntica. Neste caso, talvez caiba a referida apresentação de desculpas, ou mesmo uma confrontação com alguma palavra de esclarecimento. Entretanto, o perdão pressupõe necessariamente a assunção de responsabilidade, a clareza lúcida por parte da pessoa de que se faz necessária uma retratação. É possível, certamente, que em uma conversa sejamos persuadidos pela outra parte de que temos alguma responsabilidade que não percebíamos. Neste caso a situação muda, ainda que a pré-condição para um pedido de perdão permanece inalterada: O reconhecimento de alguma culpa ou dolo.
Atitudes como “pedir perdão por tudo ou qualquer coisa”, “pedir perdão mesmo certo”, etc, etc, podem ser tudo, menos as saídas mais adequadas. Talvez se expliquem por leviandade, ou por um orgulho pétreo, ou por uma subserviência ingênua, enfim, por motivações várias. Entretanto, saber restaurar estruturas estremecidas, corrigir desvios de rota, reconciliar-se, e atribuir o devido valor ao que precisa ser valorizado, não é algo a que todas as pessoas conseguem se dedicar. Ao que parece, é raro saber chegar diante de alguém no momento oportuno, e, com habilidade e também dignidade, pedir perdão com palavras sábias e a serenidade de um coração reconhecido. A partir daí a bola de tênis passa para o outro lado da rede, e, claro, o desdobramento dependerá do “jogador” que se encontrar ali. Há certas coisas que a pessoa tem ou não tem. E ninguém pode dar o que não recebeu. Agostinho de Hipona, que é uma das maiores figuras na história do pensamento, quis, nos últimos anos de sua vida, submeter a um lúcido exame crítico as suas numerosas obras. Surgiram assim as Retractationes (“revisões”), que revelam sua humildade e honestidade intelectual. Ele tornou-se grande porque cresceu. E quem cresce aprende que precisa retratar-se, seja consigo mesmo, com a vida, com outros, ou sobretudo com Deus. Quem cresce passa por mudanças. Não assumir seus erros, seus equívocos e suas responsabilidades é algo que caracteriza a heteronomia própria da menoridade.
Talvez Nietzsche contemple este tipo de postura como uma fraqueza característica da “moral dos escravos” — nesta se exalta a humildade, a cordialidade e a compaixão. Uma moral do fracos, dos perdedores. A moral dos senhores valoriza a altivez e, para o dominador, bom é o que é forte, e ruim é o que é fraco. Pedir perdão poderia ser, assim, algum tipo de fraqueza... Seja como for, penso que a força está justamente embutida nessa nominada “fraqueza”, e a covardia atravessa como nervo central a atitude oposta. A capacidade de saber-se conduzir diante das ofensas ou danos causados revela um certo “molejo”, uma leveza e uma nobreza que oferecem movimentos orgânicos, contrastantes com os movimentos rígidos e engessados do egocentrismo. Este não raramente se manifesta em birra infantil, distante da autonomia moral que caracteriza as pessoas maduras e operatórias.
Não sei como tem sido com você, mas esta é a minha experiência pessoal: Tenho percebido que as pessoas por quem tenho tido maior alegria de conhecer, e com as quais me sinto privilegiado ao me relacionar, conseguem encontrar um equilíbrio desejável neste tipo de contexto. Quase invariavelmente são pessoas admiráveis, que sabem entoar com dignidade a melodia dos relacionamentos em seus tons graves e agudos, assim como entendem o lugar das pausas e das fermatas. Sou grato quando elas consentem em acolher-me em seu círculo de amizades, e não raramente me surpreendo positivamente com elas. Trazem elas o frescor de um ar puro que faz muito bem. Geralmente aprendo muito com elas, e por seu agir me sinto compelido a suplicar o favor divino para me tornar alguém bem melhor do que tenho sido.