Ideias têm consequências – R. C. Sproul
The Thinker (Le Penseur), 1902, Auguste Rodin (French Sculptor, 1840-1917), Bronze and Marble, Musée Rodin, Paris
Tão logo comecei a me interessar pela história da filosofia, adquiri a volumosa obra de Padovani & Castagnola (Melhoramentos, 1ª edição, 1954), e também os calhamaços de Bertrand Russell e Will Durant. Porém, minha decepcionante experiência inicial me faz questionar se volumes daquele tipo seriam os ideais para iniciantes. Se você, tal como eu, não tiver sido favorecido com uma inteligência prodigiosa – ou mesmo mediana – e nem com um gênio exemplarmente disciplinado e perseverante, provavelmente desejará alguma coisa mais simples e breve em sua introdução a esse terreno.
Superadas algumas barreiras para o estudante secundarista do ensino público brasileiro, mais tarde, no tempo da Universidade, percebi ainda mais intensamente os desafios para o cristão neste campo concomitante da história e da filosofia. Senti o valor e a necessidade de uma clara e sólida fundamentação cristã nessas duas áreas.
Antes, ainda no tempo do Seminário, tive contato com as publicações de Edições Vida Nova nesse campo, tais como Filosofia e Fé Cristã (Brown) e Introdução à Filosofia (Geisler & Feinberg). Estas obras me foram muito úteis, assim como os volumes de Dr. Francis August Schaeffer (1912-1984), A Morte da Razão (ABU/Fiel, 1974) e O Deus que Intervém (ABU/Refúgio, 1981). Sempre senti falta, porém, de algo mais propedêutico, que servisse de auxílio aos jovens e “leigos” que estejam adentrando a esse vasto e complexo terreno, tal como me encontrei em minhas frustrantes incursões no auge da adolescência.
Nos últimos anos, editoras evangélicas brasileiras têm lançado algumas obras atualizadas, que podem favorecer o aprimoramento do estudante cristão mais aplicado. Em 2005 adquiri o pequeno livro de R. C. Sproul, Filosofia para Iniciantes (Vida Nova, 2002). Ao lê-lo, percebi que ele teria me ajudado muito lá naquele início. Quero, portanto, recomendá-lo de bom grado aos que desejam iniciar seus estudos nessa área. Como era de se esperar em uma obra com esta brevidade, há algumas sensíveis lacunas, mas, em meu entendimento, o livro satisfaz naquilo a que se propõe.
O prefácio desta edição brasileira traz algo que considero digno de nota:
Muitas vezes somos tentados a fazer pouco caso da filosofia, pois prestamos pouca atenção à origem das ideias que, com grande frequência, constituem conceitos que norteiam nossa vida. Na realidade, tendemos a pensar que todo mundo pensa da mesma forma que nós. Por isso, podemos imaginar que a filosofia seja uma disciplina de estudo muito abstrata, sem aplicação prática. Portanto, concluímos, quem se interessa por filosofia deve ser uma pessoa aérea, sem muito vínculo com a realidade.
(…) Então, onde estão as raízes do pensamento e da cultura ocidentais? Enfim, por que pensamos da forma que pensamos?
Na introdução a este livro, “Por que estudar filosofia?”, escrita em janeiro de 2000, Sproul nos relembra que ideias têm consequências (aliás, o título original do livro é The Consequences of Ideas). Algo simples, básico e aparentemente óbvio, mas que nem sempre nos encontramos devidamente avisados para as suas implicações. Sproul narra um pouco de sua ilustrativa experiência, que passo a citar com os devidos créditos ao editor:
Verão de 1959: foi meu segundo ano na faculdade e marcou o fim da “década dos dias felizes” (…). Minha maior preocupação era um emprego para as férias. Vários amigos, estudantes de engenharia, tinham encontrado trabalhos bem remunerados para o verão, que pagavam bem mais que o salário mínimo.
Minhas perspectivas eram pessimistas: eu era estudante de filosofia. Nos jornais, não encontrei um único anúncio de emprego para filósofos. Minha única alternativa era um trabalho que não exigia qualificação e pagava salário mínimo. Assim, fiquei contente ao encontrar uma vaga no departamento de manutenção de um hospital.
Quando o zelador soube que eu era estudante de filosofia, entregou-me uma vassoura e disse: “Pegue. Você pode pensar o quanto quiser, apoiado no cabo dessa vassoura“. Meus colegas de trabalho gostaram da sua ofensa. Entre outras responsabilidades, eu tinha de varrer a rua e o estacionamento em frente ao hospital.
Durante a minha primeira semana no emprego, consegui varrer toda a minha área. Meu território acabava onde o acesso ao hospital confrontava o alojamento das enfermeiras. Lá vi outro homem varrendo o estacionamento adjacente. Ele me acenou, nos apresentamos e trocamos gentilezas. Quando eu lhe disse que era estudante universitário, ele logo perguntou o que eu estudava. No momento em que ouviu “filosofia”, seu rosto se iluminou e seus olhos brilharam: Despejou sobre mim uma bateria de perguntas sobre Descartes, Platão, Hegel, Kant, Kierkegaard e outros. Eu estava atônito diante do conhecimento daquele homem. Era evidente que ele conhecia filosofia muito mais do que eu.
Achei muito estranho que um homem cuja principal ocupação é varrer ruas pudesse ser tão versado no campo abstrato da filosofia. Toda aquela conversa me pareceu estranha. Eu tinha de lhe perguntar como sabia tanto sobre filosofia. Sua história era de fazer chorar.
Meu novo amigo era da Alemanha. Obtivera o grau de doutorado em filosofia e havia sido professor de filosofia em Berlim. Quando Adolf Hitler chegou ao poder, os nazistas não se contentaram em encontrar uma “solução definitiva” para judeus e ciganos. Eles também tentaram eliminar intelectuais cujas ideias não combinassem com os “valores” do Terceiro Reich. Meu amigo perdeu seu cargo. Quando arriscou falar contra os nazistas, sua esposa e seus filhos foram presos e executados. Ele escapou da Alemanha apenas com a filha mais nova.
Perguntei-lhe por que não estava mais lecionando, e ele disse que o ensino da filosofia destruíra a vida dos seus entes queridos e arruinara a dele. Com lágrimas nos olhos, disse que agora vivia apenas para a sua filha.
Quando ouvi a história desse homem, eu tinha vinte anos de idade. Para mim, a Segunda Guerra Mundial era uma lembrança muito vaga. Para quem tem vinte, catorze anos parecem uma eternidade. Mas para o meu amigo alemão, que já passara dos cinquenta, os anos da guerra pareciam ter sido ontem. Suas lembranças do passado eram tudo menos vagas.
Meus pensamentos se detiveram em mais uma coisa naquela manhã, que é a razão por que estou contando essa história aqui. Eu estava empunhando uma vassoura porque vivia em uma cultura que dá pouco valor à filosofia e tem pouca estima por quem gosta dela. Meu amigo, todavia, estava com uma vassoura nas mãos porque vinha de uma cultura que dava grande valor à filosofia. Sua família fora destruída porque Hitler sabia que ideias são perigosas. Hitler temia tanto as consequências das idéias do meu amigo que fez tudo o que podia para eliminá-lo – juntamente com suas ideias.
(…) A filosofia nos obriga a pensar em termos de fundamentos. Com fundamentos quero dizer os primeiros princípios ou verdades básicas. A maioria das ideias que moldam nossa vida é aceita (pelo menos no começo) sem muita crítica. Não criamos um mundo ou ambiente do zero e depois vivemos nele. Entramos num mundo e numa cultura que já existem e aprendemos a interagir com eles.
(…) Nós entramos no jogo muito depois que ele foi criado. As regras foram estabelecidas, e os limites, colocados. Ficamos admirados ao ver Descartes demorar tanto e pensar tão profundamente para concluir que ele existe. Achamos isso engraçado e pensamos que é uma perda de tempo provar algo que todos sabemos ser verdade – que existimos. Ou ficamos admirados ao ver Kant passar a sua vida analisando como sabemos tudo o que sabemos, se, do nosso ponto de vista, simplesmente sabemos.
Será que sabemos? Pensadores como Descartes e Kant não estavam simplesmente contemplando o próprio umbigo. O pensamento fundamental desnuda todas as nossas pressuposições, para podermos descobrir quais são falsas e até letais. O pensamento fundamental está interessado na diferença entre verdade e falsidade porque se importa com o bem e o mal. A antiga máxima ainda vale: “Vida não avaliada não vale a pena ser vivida”. Para qualquer pensador sério, especialmente para o que diz ser cristão, uma vida não avaliada não é uma opção válida.
Se meu pensamento não tem valor no mercado ou não é bem recebido no tribunal da opinião pública, sempre posso voltar a varrer estacionamentos. O que não posso é não pensar. Não pensar é impensável.
(SPROUL, R. C. Filosofia para Iniciantes. Trad. Hans Udo Fuchs. São Paulo: Edições Vida Nova, 2002, p. 9-13)