O “Se” e o Rio – Gilson Santos
The Subsiding of the Waters of the Deluge (A diminuição das águas do Dilúvio), 1829, Thomas Cole (English-born American Hudson River School Painter, 1801-1848), oil on canvas, 90.8 × 121.3 cm (35.75 × 47.75 in.), Smithsonian American Art Museum (SAAM), Smithsonian Institution, Washington, DC, USA. Large size here.
Se não podes oferecer hoje o riso estampado,
o brilho no olho,
a alma transbordante de sonhos e esperanças.
Se não te deparas com a avidez juvenil,
o ímpeto de quem pretende colher-te todas as flores,
e encher-te a bacia com todos os frutos adocicados.
Se a poesia que lês não é a lírica e pura do adolescente,
mas a de um mau e desajeitado poeta.
Se não ouves a musicalidade romântica dos apaixonados,
e a sinfonia triste, inacabada, abate o teu espírito.
Se já não recebes todas as cartas de amor,
ridiculamente desejáveis e prazerosas.
Se, quando chegas, neste turno da noite,
não lês mais aquela biografia escorreita e pura,
sem retoques nem senões, apolínea;
porém, ao contrário, deparas-te com algum incômodo
devir dionisíaco,
fluido,
desconcertante ou vergonhoso.
Se não encontras a luz solar,
que favorece a visão da linha do horizonte
e ilumina o percurso longo e reto de vias pavimentadas;
mas, ao contrário, tudo quanto se dispõe
é a diminuta candeia cujo pavio já quase fumega.
Se te afiguram a desilusão e o cansaço,
e as cicatrizes de duros e frios golpes,
e o perfil do desamparo,
e o registro de amargas derrotas…Lembra-te!
Das pausas nas partituras e dos tons menores;
do chiaroscuro das telas barrocas;
dos romances tristes…
e das tragédias;
do cinema mudo;
do tom lúgubre dos que pranteiam as perdas amadas;
do outono… e do inverno;
das curvas;
das sombras;
das quedas dos rios… e das cachoeiras;
do crepúsculo… e da noite;
e do nublado;
das cores em todas as suas tonalidades…
do preto… e do branco;
das estrelas em seus diferentes brilhos e grandezas,
e também daquelas que, já mortas, nos legaram o seu reluzir…
Recorda, enfim, a multiforme variedade da vida
e considera o seu ciclo.
E tal como um rio,
sedento pelo mar,
segue o seu curso,
ora torrencial, ora plácido,
suplica perdão e graça para seguir o teu.
E assim também eu,
que prossigo como estou,
sem abdicar daquilo que almejo ser.