Pastorais – João Calvino
Ser pastor significa conduzir o rebanho, esforçando-se por prover-lhe o alimento e por oferecer-lhe a proteção contra os perigos. Nosso Senhor Jesus Cristo utilizou esta palavra para descrever sua própria obra, sendo sempre, Ele mesmo, o sumo Pastor e Bispo sob quem os homens são chamados a pastorear “o rebanho de Deus”. É preciso apascentar as ovelhas, apartar os bodes, afugentar os lobos, e postar-se alerta em relação ao salteador e ao mercenário. Ao dar pastores à sua Igreja, Cristo, através do Ministério da Palavra exercido por eles, equipa todo o seu povo para os ministérios variados. Isto será de grande benefício para aqueles que exercem o seu ministério com fidelidade, assim como para aqueles que o recebem.
[…] Para Calvino, onde a Palavra de Deus não é honrada, não há igreja. E a Bíblia é a Palavra de Deus inspirada e revelada em linguagem humana e confirmada ao cristão pelo testemunho interior do Espírito Santo. O Senhor Jesus Cristo, o redentor, – foco central dos escritos e pregação de João Calvino – é revelado nas Escrituras Sagradas. E, à medida que Deus revelou a si mesmo em Jesus Cristo, torna-se crucial reverenciar e interpretar, corretamente, o único meio através do qual se pode obter o pleno e definitivo acesso a Deus – as Escrituras. Pelo fato de Jesus Cristo ser conhecido somente através dos registros bíblicos, assegura-se, assim, a centralidade e a indispensabilidade das Escrituras, tanto para o teólogo quanto para os fiéis.
[…] Calvino dedicou-se laboriosamente a comentar as Escrituras Sagradas. O seu volume de comentários nas Pastorais é o nosso particular interesse aqui. […] Valendo-se da esmerada tradução de Valter Graciano Martins, e acrescido agora da notas publicadas na edição da Baker Book House, que contém citações que remetem aos originais no idioma francês, para o texto bíblico latino e para alguns desenvolvimentos em sermões de Calvino. Nos comentários, o maior exegeta do século XVI recorre a seu excelente conhecimento do grego e a seu treinamento profundo na filosofia humanista. Ao transmitir-nos este legado, Calvino revela ainda a sua dívida para com os exegetas clássicos dos tempos patrísticos. A despeito de tudo isto, todo o trabalho exegético é marcado por um lado pela brevidade e, por outro, pela clareza deste “estudioso pobre e tímido”, como descreveu a si mesmo. Além disso, como alguém já tem salientado, cumpre lembrar que os comentários de Calvino não foram “escritos numa torre de marfim, mas contra um contexto tumultuado”.
As quatro cartas comentadas por Calvino nesse volume foram dirigidas a pessoas, enquanto que as outras cartas paulinas foram destinadas a igrejas. São quatro cartas, incontestavelmente, bastante pessoais. Além das Epístolas a Timóteo e a Tito, soma este volume o comentário sobre a única carta pertencente à correspondência privada de Paulo que se tem encontrado: Filemom. Apesar de muito breve, é um texto de grande encanto e beleza, e que tem atraído a atenção de respeitados comentadores. Muito íntima, é uma epístola que nos leva para bem perto do coração de Paulo. Ela exibe uma terna ilustração de como o evangelho opera nos corações e frutifica em boas obras.
[…] Nas Epístolas Pastorais o apóstolo faz a sua despedida final, profundamente comovedora. Nelas lançamos o nosso último olhar para o operoso apóstolo da bimilenar cristandade, prestes a pôr de lado as armas, deixar o campo de batalha e ir receber a coroa de glória do vencedor em Cristo. Mesmo vergando ao peso da solidão, e ciente da proximidade da morte, ouvimos o seu brado de vitória: “Quanto a mim, estou sendo já oferecido por libação, e o tempo da minha partida é chegado. Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé. Já agora a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele Dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua vinda” (2Tm 4.6-8).
[…] As Epístolas Pastorais são vitais para as igrejas e seus pastores. Elas são o manual inspirado para a ordem eclesiástica, contendo preciosas preocupações e passagens clássicas sobre a natureza da fé cristã e sua pureza. Sua suprema glória reside no fato de que elas continuamente relembram-nos que “a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos, no presente século, sensata, justa e piedosamente, aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus, o qual a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras” (Tt 2.11-14).
Ora, se encontramos nas Pastorais as derradeiras palavras do apóstolo de Cristo aos ministros e obreiros cristãos, coloquemo-nos, pastores e igrejas, debaixo da instrução de Paulo, e valhamo-nos da exposição tão excelentemente ministrada por João Calvino.
[SANTOS, Gilson, em dezembro de 2008. Extraído de “Prefácio à Edição em Português”. In: CALVINO, João. Pastorais. Série Comentários Bíblicos. Trad. Valter Graciano Martins. São José dos Campos (SP): Editora Fiel, 2009, pp. 7-10]