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“O problema não é a quantidade de presos”

The Triumph of Death (El triunfo de la Muerte / O Triunfo da Morte), ca. 1562,  Pieter Bruegel the Elder

The Triumph of Death (El triunfo de la Muerte / O Triunfo da Morte), ca. 1562,  Pieter Bruegel the Elder (Flemish Northern Renaissance Painter, ca.1525-1569), oil on panel, 117 × 162 cm (46 × 63.8 in.), Museo del Prado, Madrid. Spain. Large size here.

Com a literal barbárie nas penitenciárias, que serve para revelar ainda mais as chagas cancerosas no organismo brasileiro, vê-se o descalabro que acomete a uma geração de “filhos do Estado brasileiro”. Jovens, em sua grande maioria, que no curso de legislações das últimas décadas foram assumidos pela tutela de uma madrasta ineficiente, vil e nada generosa. Não nos enganemos: O Estado não pode ser “pai” e nem “mãe” de ninguém. Esta lição já deveria ter sido suficientemente aprendida por todos nós.

Agora, pela mesma lógica que colocou tais jovens sob os “cuidados” estatais, alguns propõem que a maneira de prevenir novas chacinas, impetradas à degola pelas facções, braços das guerrilhas do narcotráfico, seria “esvaziar as prisões”. Assim, o resultado final da equação seria este: Quanto mais forem mortos em chacinas, mais criminosos serão soltos. Isto é, causando suficiente terror e destruição, à moda de Átila, o huno, triunfa-se na batalha.

DETAIL: The Triumph of Death (El triunfo de la Muerte / O Triunfo da Morte), ca. 1562,  Pieter Bruegel the Elder

Como é tão comum interpelar-se fenômenos sociais batizando-os ideologicamente, é, portanto, também muito comum simplesmente não desvelá-los. E o que alguns estão fazendo? Elege-se a variável da superpopulação carcerária como o cerne do problema, e propõe-se como solução a diminuição das prisões, provisórias e definitivas. E propõe-se isto para homicidas, latrocidas, traficantes, estupradores, dentre outros criminosos violentos, que encontram-se empilhados aos borbotões nas penitenciárias.

Leio hoje no jornal O Estado de São Paulo, entretanto, uma matéria com Dr. César Dario Mariano da Silva, promotor de justiça em São Paulo, especialista em Direito Penal, professor da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, e autor de várias obras, dentre elas o livro Tutela Penal da Intimidade. Parece-me que esta voz do Ministério Público reconhece, certeira, o cerne da ferida. Ele diz: “O problema não é a quantidade de presos, mas o número enorme de criminosos”.

DETAIL: The Triumph of Death (El triunfo de la Muerte / O Triunfo da Morte), ca. 1562,  Pieter Bruegel the Elder

Sim. O real problema brasileiro, exponencial, que está por detrás da falência no modelo penitenciário, é este, sem pompas e gorduras: O número enorme de criminosos. E o referido promotor público acrescenta: “Se já temos uma das maiores taxas mundial de crimes violentos, a situação iria se agravar sobremaneira de modo a ficar insuportável viver nas cidades mais populosas e violentas”. E conclui: “A solução de soltar criminosos levará necessariamente ao aumento da criminalidade e o sangue a correr será agora de inocentes cidadãos cumpridores de seus deveres”.

DETAIL: The Triumph of Death (El triunfo de la Muerte / O Triunfo da Morte), ca. 1562,  Pieter Bruegel the Elder

Não estou otimista de que todos nós brasileiros sejamos os melhores exemplos de “inocentes cidadãos” e de “cumpridores de seus deveres”. Afinal, o atual modelo de Estado brasileiro não foi gerado e formado espontaneamente no éter. Será que nós, “cidadãos brasileiros”, simplesmente podemos dizer, assentados em nossos sofás, que não temos qualquer responsabilidade com esse quadro nefasto aí? “Está culpando a vítima”, dirá alguém. Acrescento que também não estou tão seguro de que nos cabe a todos um conveniente, estático e passivo lugar de “vítima”… Tem sido muitíssimo comum entre nós uma maneira típica, à brasileira, de eximir-se de responsabilidades… Aqui ninguém é responsável por nada ou é culpado de nada… “O inferno são os outros” e “ninguém sabe de nada”. A começar de nossos mais graduados governantes (e não nos iludamos, isso não se restringe a eles), simplesmente a responsabilidade é de “ninguém”, ou “de todo mundo”, ou “deles”… Subtrair do indivíduo a sua parcela de responsabilidade tem sido uma inflexão no discurso padrão das esquerdas latinoamericanas…

DETAIL: The Triumph of Death (El triunfo de la Muerte / O Triunfo da Morte), ca. 1562,  Pieter Bruegel the Elder

Parece-me, sim, que o promotor de justiça acerta em dois pontos vitais: O problema não é a quantidade de presos, mas o número enorme de criminosos; e, a solução proposta, de soltar criminosos, levará necessariamente ao aumento da criminalidade e ao derramar de sangue na sociedade.  Este problema toca a todos nós – embora, com toda certeza, muito mais a alguns do que a outros. Hoje, nesse assunto específico, o grande dilema brasileiro, nu e cru, não é que os presídios estejam superlotados; é que eles estão longe de serem suficientes, e menos ainda adequados, aos que lá já se encontram, para não mencionar a hoste incontável que, sabidamente, lá deveria ter domicílio se entre nós fosse consistentemente louvada a justiça.

Será bem fácil, não obstante, colocar-se toda a responsabilidade no “Estado”, e tanto mais quanto se tiver como modelo político o do “Grande Estado”. Temos um número enorme de criminosos, e estes, nas últimas décadas, têm sido “filhos do Estado brasileiro”. E, definitivamente, o Estado não serve como “pai” e “mãe”. Nem mesmo como “o grande Pai dos Pobres”  – o que ainda conserva abissal distância da perversidade vampiresca de constituir-se em “mecenas” da agiotagem (inclusive a que conta com proteção legal), da jogatina, de empreiteiros canhestros, de corruptos políticos carreiristas, e de instituições escusas e sanguessugas que lhe sirvam de aparelhos. No máximo, o Estado tem conseguido transitar, nos últimos tempos, entre os arquétipos da madonna com seus bambinos e da madrasta vulgar – que em nosso caso trata-se de uma madrasta em falência. Quer me parecer que enquanto este for o nosso caminho, a Morte, na acepção mais plena e maligna da palavra, continuará triunfalmente abrindo o dela.