“Mas se não gosta nem deseja a própria luz?” – Agostinho
Saint Augustine (Saint Augustin), ca. 1645-1650, Philippe de Champaigne (Flemish-born French Baroque Era Painter, 1602-1674), oil on canvas, 78.7 × 62.2 cm (31 × 24.5 in), Los Angeles County Museum of Art (LACMA), Los Angeles, CA, USA
Razão: Estás numa boa direção; pois a razão, que fala contigo, promete que mostrará Deus à tua mente como o sol se mostra aos olhos. Porque as faculdades da alma são como que os olhos da mente: como as coisas que são certas no âmbito das ciências são tais como as coisas que são iluminadas pelo sol para que possam ser vistas, assim como o é a terra e tudo o que é terreno; mas Deus é quem ilumina. Assim, eu, a razão, estou nas mentes como a visão nos olhos. Pois não é a mesma coisa ter olhos e olhar, como tampouco olhar e ver. Por isso, a alma precisa de três coisas: ter olhos dos quais possa usar bem, olhar e ver. O olho da alma é a mente isenta de toda mancha do corpo, isto é, já afastada e limpa dos desejos das coisas mortais, o que somente a fé, em primeiro lugar, lhe pode proporcionar. Pois o que ainda não lhe pode ser mostrado enquanto esteja manchada e envolta em vícios — uma vez que ela não pode ver se não estiver sã — se não crê que verá, ela não se dá ao trabalho de procurar a sua saúde. Mas, mesmo crendo que assim ocorra e que ela verá, se puder, porém, perde a esperança de ficar sã, não irá ela resistir e menosprezar a observância das prescrições do médico.
Agostinho: Realmente é assim, principalmente porque o doente sente o rigor de tais prescrições médicas.
Razão: Portanto, à fé deve-se acrescentar a esperança.
Agostinho: É o que acho.
Razão: E o que acontecerá se, mesmo crendo que assim é e esperando que possa ficar com saúde, mas não gosta nem deseja a própria luz que é prometida, mas julga que deva se satisfazer com as trevas que são as suas enfermidades, porque já se habituou com elas, por acaso ela não rejeitará inteiramente o médico?
Agostinho: Certamente que sim.
Razão: Portanto, em terceiro lugar entra como necessário o amor.
Agostinho: Nada mais é tão necessário.
Razão: Por isso, sem essas três coisas nenhuma alma fica sã para poder ver, isto é, entender o seu Deus.
Razão: Quando tiver os olhos sãos, o que resta?
Agostinho: Olhar.
Razão: O olhar da alma é a razão. Mas como não se segue que todo aquele que olha vê, o olhar correto e perfeito, isto é, ao qual segue o ato de ver, se chama virtude: a virtude é, então, a razão correta e perfeita. Entretanto, o mesmo olhar não pode voltar os olhos, mesmo já sãos, para a luz, se não houver essas três coisas: a fé pela qual, voltando o olhar ao objeto e vendo-o, se torne feliz; a esperança pela qual, se olhar bem, pressupõe que o verá; e o amor pelo qual deseja ver e ter prazer nisso. Já ao olhar segue a própria visão de Deus que é o fim do olhar, não porque já deixe de existir, mas porque já não há nada a aspirar. (…)
(AGOSTINHO. Solilóquios, 1.6.12-13, negritos meus. In: Solilóquios e A Vida Feliz. São Paulo: Paulus, 1998, pp. 30-31. E-book aqui. O texto levanta questões muito relevantes. Enfim, para Agostinho, a razão sustenta-se sozinha? Em sendo negativa a resposta: E bastaria à razão somente a fé?)