As Quatro Estações – Nicolas Poussin
O Ocidente encerrou o século XX e ingressou no século XXI impregnado de uma cultura pop, que fortaleceu-se com a massificação dos meios de comunicação. Cada vez mais superficial, a produção cultural do Ocidente vem empobrecendo. E com ela, o Zeitgeist desta chamada pós-modernidade distancia-se gradativamente daquilo que pejorativamente foi denominado “alta cultura” – a rica produção da humanidade, sobretudo Ocidental (greco-romana e judaico-cristã), em seu esforço por significar, simbolizar e estruturar a vida. Uma ilustração deste fenômeno me pareceu evidenciar-se no intervalo de sete anos entre duas visitas ao museu do Louvre, “santuário” que abrange milênios da cultura e da civilização tanto do Oriente quanto do Ocidente, e o museu mais visitado do mundo.
The Louvre façade seen from Rue Fromenteau (Vue de la façade ouest du Louvre), late 18th century, Philibert-Louis Debucourt (French Painter and Printmaker, 1755-1832), oil on canvas, 61cm x 50cm, Musée du Louvre, Paris, France.
O museu do Louvre é um edifício constituído por três alas: Richelieu, Sully e Denon, com diferentes níveis e salas. O departamento de pintura italiana é o mais prestigiado; este se encontra no primeiro andar da ala Denon. É aqui que se aglomera a multidão dos quatro cantos do planeta, numa verdadeira Babel. Na sala sete se acotovelam as pessoas, clicando, desajeitadas, os seus variados dispositivos fotográficos. Ali se posiciona, soberana, atrás de uma proteção de vidro à prova de balas, La Gioconda, “a sorridente”, obra na qual Da Vinci melhor concebeu a sua característica técnica sfumato. O famoso óleo sobre madeira de álamo mede setenta e sete centímetros de altura e cinquenta e três de largura. O destaque absurdamente desproporcional, oferecido àquela senhora, leva alguns visitantes mais desavisados a não atentarem, por exemplo, para o maior quadro exposto no museu, no outro lado daquele mesmo ambiente, na contígua sala seis. Quem contempla a Mona Lisa fica de costas para As Bodas de Caná. O óleo sobre tela, do pincel renacentista de Véronèse, tem as impressionantes medidas de 6,77 metros de largura por 9,94 de comprimento, o que resulta em mais de sessenta e sete metros quadrados de área pintada. Misturando personagens bíblicos com homens e mulheres de sua época, Véronèse retrata, com aparente facilidade, nada menos do que cento e trinta participantes na festa que foi cenário do primeiro milagre de Cristo.
Esperaria-se que, no maior “templo” da arte localizado na França, a massa de visitantes ao menos subisse ao departamento de pintura francesa, localizado no segundo andar da ala Sully e em parte da ala Richelieu (as únicas do Louvre em que o museu dispõe de segundo andar). Ironicamente, não é o que acontece – fenômeno que me parece ter se acentuado, em comparação à visita anterior ao museu. Naquele andar também se encontram as obras neerlandesas, flamengas e germânicas. Apenas como exemplo, ali se encontram A Rendeira de Vermerr, o Autorretrato de Dürer, A Virgem do Chanceler Rolin de Van Eyck, O Trapaceiro de La Tour, sem mencionar as obras de Rembrandt na sala trinta e um e as de Rubens na grande sala dezoito (Galeria Médicis). Falando especificamente de pintura francesa, a seção dos impressionistas (salas B e C) estava vazia – uns amigos, que foram ao Rive Gauche no mesmo dia, comentaram que o d´Orsay contava igualmente com bem poucos visitantes. As salas dos realistas franceses, como Millet, contavam com um ou dois visitantes, que passavam de largo pelas delicadas telas de Camille Corot. Na sala das paisagens de Claude Lorrain, um solitário segurança, assentado em uma cadeira junto ao acesso, repetia indisfarçadamente seus longos bocejos.
Cheguei então às obras de Poussin. Francês de nascimento e romano por adoção, Nicolas Poussin (1594-1665) é um dos maiores representantes do classicismo do século XVII e o principal pintor do estilo barroco francês. Este é o artista que conecta as alas Sully e Richellieu. Na sala dezesseis estive literalmente sozinho, até que chegou ali uma jovem chinesa: óculos de grife, uma “geringonça” eletrônica ao ouvido e caneta e bloco de anotações à mão. Separados por alguns poucos e respeitáveis metros, por prováveis décadas de idade e pela imensa distância entre as culturas que representávamos, postamo-nos silenciosos diante de As Quatro Estações de Poussin. Calados e intangíveis, o português e o mandarim cederam lugar à universal linguagem da arte, que nos falava ali por meio de quatro retratações do texto bíblico veterotestamentário.
The Spring (The Garden of Eden) / Le Printemps (Le Paradis Terrestre), 1660-1664, Nicolas Poussin (French Baroque Era Painter, 1594-1665), oil on canvas, 118 x 160 cm, Musée du Louvre, Paris, France. From the series: The Four Seasons. Large size here.
Para retratar a Primavera, o pensamento de Poussin aportou no Jardim do Éden. O cenário é tomado pelo verde da vegetação e pelo azul do firmamento. Destacam-se duas árvores repletas de frutos sazonados. Não se vê animais, nem mesmo a serpente (embora o observador mais atento notará algumas aves nadando no lago ao fundo). Sobre a nuvem, o Criador é retratado como na visão profética: um “ancião de dias” vestido de branco. Em rigor, o tema é o jardim e não o casal; este compõe o quadro, próximo ao rio do primeiro plano. O primeiro casal, em nudez de perfil, está em vias de declinar da felicidade prelapsária. Ambos se entreolham em cumplicidade. A mulher está com o braço esquerdo indicando a árvore e apresentando o fruto; com seu braço direito convida o esposo à ação, puxando-o pelo braço esquerdo. A perna esquerda do homem, em posição de apoio, sugere o movimento por vir. Na leitura do artista, é a primavera boreal, estação associada ao reflorescimento da flora e da fauna terrestres; teologicamente, embora a placidez do visível, sopram os primeiros ventos de um longo e tenebroso inverno.
The Summer (Ruth and Boaz) / L’été (Ruth et Boaz), 1660-1664, Nicolas Poussin (French Baroque Era Painter, 1594-1665), oil on canvas, 118 x 160 cm, Musée du Louvre, Paris, France. From the series: The Four Seasons. Large size here.
O Verão é retratado com um episódio do período dos juízes. Segadores recolhem feixes no campo de cevada de Boaz, o belemita. Lá ao fundo, uma moradia sobre a rocha sugere estabilidade e riqueza. No primeiro plano, à esquerda, debaixo da árvore há água fresca e também abundância de pão no cesto. O dia é quente e o cefeiro toma a água de sua botija. Há quem corte os feixes; há quem os amarre; e há quem os transporte. Na eira à direita, cinco cavalos estão emparelhados, ao que parece, servindo à debulha e talvez ao transporte dos grãos. Assentado, um músico executa a sua melodia. “A vida é mais do que o alimento”. Este é o contexto para a cena principal, que envolve Boaz, Rute e o servo encarregado. A mulher moabita, de mãos vazias, espalmadas, tem atrás de si um pequeno molho que colhera na respiga. Reclinada diante do homem que virá a ser o resgatador da família de Noemi, a estrangeira recebe dele amplo favor para desfrutar do campo e dos seus bens. O servo de confiança, portando o aguilhão que simboliza a autoridade que detém, reclina a cabeça e pousa a mão direita sobre o coração. É a solene e emblemática postura, escolhida pelo pintor clássico, para indicar que a ordem do senhor será cumprida à risca. Em mais alguns dias, um menino nascerá em Belém, marcando as origens da principal família da monarquia hebraica, e o período histórico mais glorioso daquela antiga civilização.
The Autumn (The Bunch of Grapes Taken from the Promised Land) / L’Automne (La Grappe de raisin rapportée de la Terre promise), 1660-64, Nicolas Poussin (French Baroque Era Painter, 1594-1665), Oil on canvas, 118×160 cm, Musée du Louvre, Paris, France. From the series: The Four Seasons. Large size here.
Para retratar o Outono, Poussin escolheu uma cena do período do êxodo hebreu. Havendo deixado a maior civilização da época, a descendência de Israel encontra-se no deserto, conduzida por Moisés. O povo numeroso está em demanda a uma terra que nunca vira. Moisés envia doze espias à terra de Canaã; um homem representando cada uma das doze tribos. O relato bíblico é o seguinte:
Enviou-os, pois, Moisés a espiar a terra de Canaã; e disse-lhes: Subi ao Neguebe e penetrai nas montanhas. Vede a terra, que tal é, e o povo que nela habita, se é forte ou fraco, se poucos ou muitos. E qual é a terra em que habita, se boa ou má; e que tais são as cidades em que habita, se em arraiais, se em fortalezas. Também qual é a terra, se fértil ou estéril, se nela há matas ou não. Tende ânimo e trazei do fruto da terra. Eram aqueles dias os dias das primícias das uvas.
(Citação bíblica: Números 13.17-20, tradução Revista e Atualizada no Brasil da SBB)
Na retratação de Poussin, mulheres cananeias recolhem do fruto de sua terra. Uma delas se dirige para alguma das residências nas cidades e povoados ao fundo. Um homem da terra pesca no lago. Em sentido contrário, dois dos príncipes, portando as suas espadas, seguem pelo caminho. De uma jornada de quarenta dias, os espias cortaram num vale “um ramo de vide com um cacho de uvas, o qual trouxeram dois homens numa vara, como também romãs e figos”. O vale recebeu um nome que, traduzido, significa literalmente “cacho”. Uma cena muito apropriada para retratar a melhor época para o desenvolvimento das frutas. Na dança dos sentidos, o saboroso paladar das seletas frutas logo cederá a primazia ao medo causado pela visão dos gigantes.
The Winter (The Flood / L’Hiver (Le Déluge), 1660-1664, Nicolas Poussin (French Baroque Era Painter, 1594-1665), oil on canvas, 118 x 160 cm (46.5 x 63 in.), Musée du Louvre, Paris, France. From the series: The Four Seasons. Large size here.
O dilúvio foi escolhido para retratar o Inverno. Poussin escolhe uma das fases avançadas do cataclisma relatado no texto bíblico. O cenário é de morte e desolação. As águas se avolumam sobre as regiões mais elevadas. Uma serpente sinuosa procura lugar seco. No barco, alguns empenham-se em derradeiros esforços. Um casal sobrevivente tenta resgatar o filho indefeso. Entre tábuas e animais, os homens se apegam àquilo que podem. No barco que despenca na queda, um homem, erguido e segurado pelo irmão ou amigo, levanta os braços ao céu suplicando misericórdia. Relâmpagos riscam o céu. A luz é pouca e a noite será longa. Ao fundo, à esquerda, o artista procede à tradicional (e, muito provavelmente, inapropriada) representação da arca, que desliza numa placidez improvável. Para os homens fora da arca, a esperança é uma ilusão. E assim, o artista fecha o ciclo da vida com o seu inverno boreal. É a sua retratação para a história do ser humano, em suas quatro estações. Para comovisões, como a de antigos gregos, a série remeteria para um ciclo de “eterno retorno”… Não obstante as utopias, em cosmovisões materialistas e existencialistas ressalta-se o primeiro plano do cenário, como enfocado em outras pinturas no mesmo tema. Para a cosmovisão cristã, a arca ao fundo carrega a esperança.
Embora em tempos diferentes, os representantes do Brasil e da China deixaram vazia a sala dezesseis. Os quatro quadros lá permanecem, num clássico convite aos seres humanos a que considerem as estações da vida, e a identificarem-se realisticamente no fluxo terreal inexorável, que, na cosmovisão de Poussin, vai do paraíso ao juízo.