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Repassando o “anel da culpa” para outrem – Paul Tournier

The Scapegoat (Le bouc émissaire / Der Sündenbock), 1854-1856, William Holman Hunt

The Scapegoat (Le bouc émissaire / Der Sündenbock), 1854-1856, William Holman Hunt (English Pre-Raphaelite Painter, 1827-1910), Oil on canvas, 87 x 140 cm, Lady Lever Art Gallery, Port Sunlight, Merseyside, England, UK. Large size here.

Assim, ainda que a revolta, como bem mostrou A. Camus, seja uma aspiração à liberdade, o que lhe confere nobreza e caráter humano não é a liberdade. Pode-se ser escravo da revolta, seja ela aberta ou surda, expressa ou reprimida. A psicologia há de fazer passar da revolta escondida à revolta vivencial, o que já é por si mesmo mais sadio e mais autêntico. […]

Esta é também a palavra que brota espontaneamente da boca das crianças, quando o pai intervém em uma briga. Cada um grita: “Não é minha culpa!” Nesse campo, todos nós permanecemos crianças toda a nossa vida, e o nosso primeiro impulso é dar sempre a mesma desculpa: “Não é minha culpa”. Assim este mecanismo psicológico se reproduz ao infinito, em todas as sociedades, em todas as empresas, em todos os grupos sociais e entre as nações.

Em todos os países, o serviço de espionagem chama-se serviço de contra-espionagem. O recurso às armas é sempre considerado como ato de legítima defesa. Mesmo os cristãos são incapazes de resolver esse dilema e sentem-se presos entre duas culpas: a de aprender a matar (se são soldados) e a de trair o país que garante a sua segurança (caso neguem-se a matar).

Se existem no mundo tantas paixões desencadeadas, tantas acusações implacáveis e sinceras contra “os outros” e que agravam sem cessar os conflitos entre os homens, é porque todos carregam entre si sentimentos de culpa, dos quais eles têm uma necessidade imperiosa de se defender, jogando as responsabilidades sobre outrem. O gosto pelo escândalo e pela fofoca responde por essa necessidade de sentir-se menos só com sua própria culpa reprimida, enfatizando a dos outros. Isto acontece em uma escala universal, e encontra-se nos detalhes da vida cotidiana. Descontente conosco mesmo, queixamo-nos dos outros. Antigamente jogava-se nos salões o jogo do anel. Colocados em círculo, os jogadores deveriam, cada qual, quando recebesse o anel do vizinho, repassá-lo imediatamente ao outro vizinho. Perdia quem se encontrasse, na brusca interrupção do jogo, de posse do anel. A humanidade inteira se parece com esses jogadores. A culpa é passada de uns para os outros.

Há infelizmente uma diferença entre o jogo do anel e o da culpa. O jogador que passa o anel a seu vizinho não o tem mais em suas mãos; entretanto, na vida real não nos desembaraçamos da nossa culpa pessoal jogando-a sobre outrem. Camus escreveu: “Sei que cada um é portador da miséria, porque ninguém no mundo é incólume a ela”.

Se não projetarmos as responsabilidades sobre a esposa, sobre os pais, sobre o patrão ou sobre um amigo, nós as projetaremos sobre a sociedade, sobre o regime econômico, ou, ainda, como o Dr. Bonet nos mostrou, nós as lançaremos sobre certas categorias de homens vistos como responsáveis por todos os males do mundo: os judeus, os capitalistas, os ateus etc. Podemos também projetar as nossas responsabilidades sobre a hereditariedade ou sobre o nosso corpo, considerando-o então como uma realidade estranha a nós mesmos, pela qual não seríamos responsáveis. O desprezo do corpo e da sexualidade, que é a causa de tantas falsas vergonhas e de neuroses, responde a esta necessidade de nos livrar da responsabilidade pessoal. O desenvolvimento dos seguros responde também a esta necessidade de descarga de responsabilidade e chega-se a ouvir de alguém culpado por um acidente de carros dizer: “Não faz mal, tenho seguro”.

Finalmente, a responsabilidade é projetada sobre Deus. Muitos homens não ousam confessá-lo claramente, mas carregam secretamente consigo raiva contra Deus por todos os sofrimentos e por todas as suas faltas. […]

Entretanto, fico sempre feliz quando alguém ousa contar-me suas queixas contra Deus. Frequentemente é um homem que se diz incrédulo, porque ele acredita que há muito mal no mundo para que se possa crer em Deus. “Ou não existe Deus, ou Deus não é nem todo-poderoso, nem justo, nem bom”, diz ele. Na realidade, este homem me parece render honra a Deus melhor que muitos fiéis que se acomodam muito facilmente ao drama humano. Ele leva a sério todo o poderio e a santidade de Deus. Ele dá testemunho também, indiretamente, da delicadeza de sua consciência, de seu próprio sentimento de culpa, porque ele sente necessidade de jogá-lo sobre Deus.

Sem o saber, este homem reúne-se aos crentes mais autênticos. “Eis que são estes os ímpios; e sempre tranquilos, aumentam suas riquezas. Com efeito, inutilmente conservei puro o coração e lavei as mãos na inocência”, exclama o salmista. E acrescenta: “Em só refletir para compreender isso, achei mui pesada tarefa para mim” (Sl 73.12, 13, 16).

É natural ao homem jogar a sua culpa sobre alguém e sobre Deus, mas ele não se liberta da culpa dessa forma. A revolta contra outrem e contra Deus, que resulta disso, torna-se uma fonte de novos impulsos para o mal e, por consequência, para novas culpas.

(Paul Tournier, 1898-1986, médico psiquiatra suíço, nascido e formado em Genebra. Autor de vários livros. Sua preocupação  com a chamada “Medicina da Pessoa” o levou à prática da psicoterapia. In: Culpa e Graça; Uma Análise do Sentimento de Culpa e o Ensino do Evangelho. Tradução Rute Silveira Eismann, do original em francês Vraie ou Fausse Culpabilité. São Paulo: ABU Editora, 1985, pp. 160-163)