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A Vocação Missionária da Igreja e a Abordagem Cultural

The Sacrifice at Lystra, 1515-16, Raphael Sanzio

The Sacrifice at Lystra, 1515-16, Raphael Sanzio (Italian High Renaissance Painter, 1483-1520), Bodycolour over charcoal underdrawing on paper, mounted on canvas, 347 x 532 cm, Victoria and Albert Museum, London, UK. From the series Raphael Cartoons for the Sistine Chapel: seven large cartoons for tapestries, belonging to the British Royal Collection but since 1865 on loan to the V & A Museum.

Desde os tempos do apóstolo Paulo que a relação entre fé cristã e cultura tem sido motivo de dificuldades e debates, especialmente quando o assunto é missões transculturais. Em suas viagens missionárias, e mesmo em suas cartas, Paulo lidou com esta questão. Na Epístola a Tito, por exemplo, o apóstolo chamou a atenção para aspectos singulares da cultura cretense, na qual Tito trabalhava e estava inserido, reconhecendo que existiam nela elementos que não deveriam ser compartilhados pela igreja cristã local; ao contrário, os cristãos precisariam confrontá-los e buscar a sua transformação. Em sua vocação missionária, a Igreja não deveria, portanto, simplesmente absorver ou submeter-se a uma cultura assim como esta se apresenta, postando-se passivamente diante dela.

O Pacto de Lausanne, que resultou do congresso mundial que ocorreu em 1974, em Lausanne, Suíça, serviu de plataforma para conceituar cultura como “um conjunto integrado de crenças, de valores, de costumes, e de instituições que expressam estas crenças, valores e costumes, que unem a sociedade e lhe proporcionam um sentido de identidade, de dignidade e de continuidade”. Desde então, este conceito tem sido adotado por muitos missionários cristãos ao redor do mundo. Neste sentido, como deveriam as igrejas cristãs, e também os cristãos individualmente, se relacionar com a cultura na qual realizam a obra missionária? Sugere-se que no exercício de sua vocação missionária os cristãos se empenhem ativamente em quatro atitudes:

Em primeiro lugar, é necessário conhecer a cultura. Há perigos graves em ignorar a cultura onde vamos ministrar. A fim de julgar as nossas ideias e atitudes, será necessário conhecer bem duas variáveis: os valores da fé cristã e as forças do mundo que formam os pensamentos ao redor. Aqueles que as conhecem podem abordar a cultura de forma mais sóbria e construtiva. A Igreja precisa, portanto, aprender a examinar toda cultura à luz do senhorio de Cristo e da revelação de Deus. Em toda parte os cristãos precisam refletir seriamente sobre como sua vida em Cristo deveria estar relacionada com a cultura. Personagens bíblicos, tais como Daniel e José, sabiam ser excelentes no conhecimento “secular” ao mesmo tempo em que mantinham suas convicções mais profundas extraídas da revelação especial.

Em segundo lugar, é preciso preservar a cultura. Os teólogos reunidos em Lausanne salientaram que há em cada cultura aspectos que não são incompatíveis com o senhorio de Cristo, e que, portanto, não precisam ser ameaçados ou descartados, mas, antes, preservados. A Igreja precisa desenvolver uma compreensão profunda da cultura contemporânea e local e apreciá-la genuinamente. João Calvino disse que não podemos perder os dons de Deus distribuídos até mesmo aos incrédulos por sua graça comum. Até mesmo costumes bem simples, como, por exemplo, no cotidiano da culinária brasileira, de se comer arroz e feijão, ou o pão de queijo mineiro, manifestam a relevância de que cristãos valorizem a cultura e se esforcem por preservá-la.

Uma terceira atitude é enriquecer a cultura. Os exemplos bíblicos mencionados anteriormente, José e Daniel, exemplificam esta postura. Ambos foram erguidos a lugar de destaque em potências mundiais de sua época, ganharam o respeito dos soberanos locais, e empenharam a sua energia na cultura “secular” que estava diante deles. Eles enriqueceram aquelas culturas, oferecendo preciosos préstimos a elas. Quando os exilados judeus na Babilônia sonhavam com um retorno breve à sua terra, o realismo de Jeremias instou a que não dessem ouvidos aos profetas de ocasião que previam um regresso imediato. A correspondência profética recomendou aos judeus que edificassem casas e habitassem-nas, e que plantassem jardins e comessem do seu fruto. DETAIL: The Sacrifice at Lystra, 1515-16, Raphael Sanzio Recomendou ainda que se multiplicassem, embora a terra estranha e o contexto de dominação. Enfim, que procurassem a paz da cidade para onde tinham sido transportados cativos e que orassem por ela, pois, disse ele, “na sua paz vós tereis paz”.

A quarta atitude é transformar a cultura local, promovendo a glória de Deus. A fé cristã pressupõe que, em virtude da Queda, toda cultura precisa de transformação. O Evangelho clama por transformação em seu chamado por fé e arrependimento. Conquanto tenha havido na história do cristianismo uma tendência, influenciada pelo ascetismo e platonismo, de chamar o cristão para fora do mundo e para dentro de atividades exclusivamente relacionadas à igreja, a abordagem que nos parece mais apropriada é que a igreja deve servir ao cristão para que este possa servir a Deus no mundo. Em sua vocação missionária, a igreja deveria evitar tanto um otimismo ingênuo quanto o pessimismo total. Um sóbrio realismo cristão implicaria em servir a Deus nas esferas deste mundo, trabalhando energicamente e esperando “os novos céus e a nova terra” em que a justiça habitará, e onde, então, será final e totalmente transformada a cultura e liberta de toda servidão ao mal e ao sofrimento.

(Leia também: Três Pilares no Conceito Secular de Cultura)