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Murillo e a Série de Pinturas Sobre “A Vida de Jacó”

Bartolomé Esteban Perez Murillo (1618-1682) foi um pintor nascido em Sevilha, considerado por alguns como aquele que “melhor define o barroco espanhol”. Tendo passado a maior parte da vida em sua cidade natal, desde após os seus vinte anos veio se tornando reconhecido no ambiente artístico sevilhano. Algumas de suas obras remotas já demonstravam notável influência de Van Dyck, Ticiano e Rubens. Quando contava com quarenta anos residiu por um breve período em Madri, onde tomou contato com a pintura flamenga e veneziana e também conheceu grandes artistas madrilenos, como Velázquez, Francisco de Zurbarán e Alonso Cano.

Self Portrait (Autorretrato), ca. 1670, Bartolomé Esteban Murillo

Self Portrait (Autorretrato), ca. 1670, Bartolomé Esteban Murillo (Spanish Baroque Era Painter, ca.1617-1682), oil on canvas, 122 x 107 cm, National Gallery, London, UK. Large size here. The Latin inscription on the cartouche at the centre of the ledge: Bart,usMurillo seipsum depin gens pro filiorum votis acpreci bus explendis (Bart,me Murillo portraying himself to fulfil the wishes and prayers of his children / Bart,me Murillo se retrata a sí mismo para cumplir los deseos y las oraciones de sus hijos).

A partir de 1660, Murillo pintou as suas obras mais significativas e admiradas e em 1665 teve início o seu período mais produtivo, ou seja, aquele em que recebeu mais encomendas. Neste ano, a fama alcançada por Murillo estendeu-se por todo o país, chegando à corte madrilena, onde, segundo consta, o próprio rei Carlos II o teria convidado a estabelecer-se em Madri.

Entre as habilidades menos conhecidas de Murillo está a de ser um grande pintor de paisagens seguindo a tradição flamenga. Os melhores exemplares deste gênero integram a série narrativa “A Vida de Jacó”. Composta por cinco pinturas de extraordinária qualidade, a série acompanha a vida do patriarca do Antigo Testamento registrada no livro de Gênesis. Esta série de Murillo suscita grande interesse não só em relação à obra do artista em particular, mas também em relação ao contexto mais amplo da pintura espanhola do século XVII. As dimensões excepcionalmente grandes das paisagens em que os episódios ocorrem são incomuns para o artista, assim como, de um modo geral, para a pintura espanhola daquele século.

Os cinco quadros foram encomendados por Melchor de Guzmán, Marquês de Villamanrique, de Sevilha, tendo sido expostos na fachada de seu palácio nas festas de consagração da igreja de Santa María la Blanca, em 1665, e foram pintados provavelmente por volta de 1660. O marquês teria encomendado as paisagens a Ignacio de Iriarte, o pintor barroco espanhol que se estabelecera em Sevilha, onde se especializou na pintura paisagística. As figuras humanas, porém, foram encomendadas a Murillo. A partilha do trabalho, entretanto, resultou frustrante, visto que os dois pintores disputavam sobre quem haveria de fazer primeiro a sua parte. Murillo, enfadado, acabou realizando o trabalho sozinho, cujo resultado agradou imensamente ao Marquês, que levou as telas para Madri.

Em 1787, Richard Cumberland (1732-1811), dramaturgo inglês e cronista de arte, teria visto o conjunto de obras no palácio do Marquês de Santiago em Madri, e descreveu a série como consistindo de “cinco grandes composições exibindo a vida de Jacó em diferentes períodos de sua história”. Ele opinou que tais pinturas eram as melhores que ele já vira, com exceção de uma Vênus de Ticiano. Em 1817, o catálogo de vendas de Alexis Delahante informava que as telas permaneceram no palácio do Marquês de Santiago até a “Revolução de Espanha”, em 1808, quando foram compradas por preço bastante significativo. Todas as obras da série deixaram a Espanha, portanto, no início do século XIX, tendo sido posteriormente desmembradas.

Até pouco tempo atrás, apenas quatro das telas da série eram conhecidas em museus públicos. No Museu Nacional do Hermitage, em São Petersburgo, Rússia, estão “Isaque Abençoando Jacó” e “O Sonho de Jacó”. Nos Estados Unidos, no Museu de Arte de Cleveland, Ohio, encontra-se a tela “Labão procura os seus ídolos domésticos furtados na tenda de Raquel”, e no Meadows Museu da Southern Methodist University (SMU), em Dallas, Texas, “Jacó pondo as varas descascadas diante do rebanho de Labão”. Porém, uma pintura que corresponde à descrição da obra de Murillo, “O Encontro de Jacó e Raquel Junto ao Poço”, foi adquirida em 1987 pela Galeria Nacional em Dublin, Irlanda, e assim a série sobre a vida de Jacó estaria completa. Esta pintura, que muito enriquece a forte representação dos artistas sevilhanos entre as obras da escola espanhola, foi doada à Galeria Nacional da Irlanda pela senhora Alice Murnaghan, a partir da coleção de seu falecido marido, James Murnaghan, juiz da Suprema Corte da Irlanda, que presidiu o Conselho daquela galeria entre 1939 e 1963, e do qual foi membro até a sua morte em 1973.

Caracterizadas por absoluto naturalismo, as cinco amplas paisagens são ordenadas em torno de um motivo central e abertas a um fundo luminoso distante, sobre o qual se recortam difusos perfis de montanhas, o que sugere o conhecimento de paisagistas flamengos e talvez de paisagens italianas famosas.

Isaac Blessing Jacob (Issac bendice a Jacob), ca. 1660-1665,Bartolomé Esteban Murillo

Isaac Blessing Jacob (Issac bendice a Jacob), ca. 1660-1665, Bartolomé Esteban Murillo (Spanish Baroque Era Painter, ca.1617-1682), Oil on canvas, 245 x 357 cm, Hermitage Museum, St. Petersburg, Russia. Large size here.

Em “Isaque Abençoando Jacó”, Murillo insere o cenário da bênção na paisagem ampla, abrindo larga porta para que possamos ver o aposento do velho e cego pai. Assim como nas outras notórias obras em que o tema é evocado, o tradicional ambiente íntimo retrata o jovem ajoelhado diante do pai em seu leito. Como nas demais pinturas do tema, Rebeca está ao lado de seu filho favorito, legitimando a trapaça, na qual o gêmeo mais novo se faz passar pelo irmão mais velho. Igualmente, dois detalhes comuns às demais pinturas no tema encontram-se também presentes:  Há uma mesa posta e Esaú se aproxima. Na tela de Murillo, Esaú, em pequeno detalhe no fundo esquerdo, retorna da caça acompanhado pelos cães. Uma casa de pombos no alto da rústica residência parece introduzir a ideia de viagem, isto é, de um “longo voo”.

Jacob's Dream (El sueño de Jacob), ca. 1660-1665, Bartolomé Esteban Murillo

Jacob’s Dream (El sueño de Jacob), ca. 1660-1665, Bartolomé Esteban Murillo (Spanish Baroque Era Painter, ca.1617-1682), oil canvas, 246 x 360 cm, Hermitage Museum, St. Petersburg, Russia. Large size here.

Em “O Sonho de Jacó” o cenário noturno é iluminado por uma abertura no céu. Uma escada, cuja base toca o chão e o topo adentra ao ceú através da abertura luminosa, é utilizada por anjos que descem e sobem por ela. Este é o conteúdo essencial do sonho do jovem que fugia da ira de seu irmão. Em Betel, no limiar de sua saída da Palestina, e também de um futuro desconhecido sob todos os aspectos, o solitário suplantador repousa sobre um travesseiro de pedra, enquanto seus pertences e cajado jazem ao lado. O patriarca caracterizado por uma vontade forte e indeclinável vê-se ali rendido e indefeso.

The Meeting of Jacob and Rachel at the Well (Encuentro de Jacob y Raquel en el Pozo), ca. 1660-1665, Bartolomé Esteban Murillo

The Meeting of Jacob and Rachel at the Well (Encuentro de Jacob y Raquel en el Pozo), ca. 1660-1665, Bartolomé Esteban Murillo (Spanish Baroque Era Painter, ca.1617-1682), Oil on canvas, 245.5 x 363.5 cm, National Gallery of Ireland, Dublin, Ireland.

Em “O Encontro de Jacó e Raquel Junto ao Poço”, Murillo retrata o momento em que Jacó, chegado ao seu destino no Oriente, encontra-se junto ao poço no campo, onde “três rebanhos encontravam-se deitados junto dele”. A bela filha mais nova de Labão aproxima-se com as suas ovelhas, e, não recebendo a ajuda dos demais pastores para a remoção da pedra da boca do poço, vê inclinar-se solícito o filho mais novo da irmã de seu pai. Assim como nas demais pinturas clássicas neste tema, Murillo escolhe para Jacó a postura emblemática, isto é, na qual se inclina diante da mulher pela qual se apaixona. Em rigor, a postura afetiva de toda a sua vida em relação a ela.

Jacob Laying Peeled Rods before the Flocks of Laban (Jacob pone las varas al ganado de Labán), ca. 1660-1665, Bartolomé Esteban Murillo

Jacob Laying Peeled Rods before the Flocks of Laban (Jacob pone las varas al ganado de Labán), ca. 1660-1665, Bartolomé Esteban Murillo (Spanish Baroque Era Painter, ca.1617-1682), Oil on canvas, 221 x 360 cm (87 3/4 x 142 1/2 in.), Meadows Museum, SMU, Dallas, Texas, USA. Large size here.

Em “Jacó pondo as varas descascadas diante do rebanho de Labão” Murillo traz Jacó para o primeiro plano em um ambiente reservado. O contrato de Jacó com o sogro lhe conferia como salário os animais salpicados e malhados do rebanho. Entretanto, o tio, em sua sagacidade, levou os animais salpicados e malhados para seus filhos, pondo-os à distância de Jacó. Este, por sua vez, “tomou varas verdes de álamo, de aveleira e de plátano e lhes removeu a casca, em riscas abertas, deixando aparecer a brancura das varas”. Dispondo as varas listadas por ocasião do acalamento, agiu baseado na crença generalizada de que se algo impressionar vivamente a visão durante a gravidez ou a concepção, deixará a marca no embrião. Embora a crença sem fundamento, o que resultou foi um grande rebanho de animais salpicados e malhados, ao qual se aplicou, ademais, o acasalamento seletivo.

Laban Searching for his Stolen Household Gods (Laban searching for his stolen household gods in Rachel's tent / Jacob busca los ídolos domésticos en la tienda de Raquel), ca. 1660-1665, Bartolomé Esteban Murillo

Laban Searching for his Stolen Household Gods (Laban searching for his stolen household gods in Rachel’s tent / Jacob busca los ídolos domésticos en la tienda de Raquel), ca. 1660-1665, Bartolomé Esteban Murillo (Spanish Baroque Era Painter, ca.1617-1682), oil on canvas, 243 x 362 cm (95 5/8 x 142 1/2 in.), Cleveland Museum of Art, Cleveland, Ohio, USA. Large size here.

Finalmente, em “Labão procura os seus ídolos domésticos furtados na tenda de Raquel”, Murillo retrata um episódio ocorrido imediatamente após a saída de Jacó em regresso à terra de seus pais. A viagem de Jacó tem sido amplamente retratada nas artes, assim como este episódio em particular. Antes de sair, Raquel furtara os ídolos do lar que pertenciam a seu pai. Após a fuga da numerosa família, Labão seguiu o encalço de Jacó, julgando que este lhe furtara os ídolos. Jacó, então, autoriza o sogro a procurar os ídolos dentre os de sua numerosa caravana, sob ameaça de morte ao culpado. Labão entrou primeiro nas tendas de Jacó, de Lia e das duas servas. Nada encontrando nelas, entrou na tenda de Raquel. Esta “havia tomado os ídolos do lar, e os pusera na sela de um camelo, e estava assentada sobre eles”. Raquel desculpou-se dizendo que não poderia levantar-se ante a presença do pai porque se achava com “as regras das mulheres”. O velho homem procurou e apalpou por toda tenda, não achando, contudo, os ídolos furtados. Ele depois retornou à sua casa, e a família de Jacó seguiu viagem, havendo Raquel ludibriado o próprio pai e levado consigo os ídolos que tanto prezava.

Mindy Nancarrow Taggard, em seu livro As Alegorias de Murillo da Salvação e do Triunfo; A Parábola do Filho Pródigo e A Vida de Jacó (Murillo’s Allegories Of Salvation And Triumph: The Parable Of The Prodigal Son And The Life Of Jacob), relembra que esta série foi pintada na crucial década do declínio espiral da Espanha: 1660-1670. Taggard propõe que as pinturas de “A Vida de Jacó”, juntamente com as seis obras que compõem a série “A Parábola do Filho Pródigo” (que representa a conhecida parábola de Cristo registrada no Evangelho de Lucas), possuem significados alegóricos. Sabe-se que as vidas do filho pródigo e do patriarca foram interpretadas simbolicamente desde o século IV por teólogos cristãos. Segundo Taggard, as duas séries seriam alegorias do contexto e do espírito que varreu a península espanhola na segunda metade do século XVII, o que era comumente visto na arte espanhola. Taggard propõe que o triunfo metafórico expresso em “A Vida de Jacó” estaria diretamente ligado ao declínio do império espanhol sob a monarquia dos Habsburgos.