Infância – Carlos Drummond de Andrade
A Abgar Renault
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.No meio dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
– Psiu… Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro… que fundo!Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.
(Carlos Drummond de Andrade, 1902-1987. In: Antologia Poética. Rio de Janeiro: Record, 1991, p. 67)
Robinson Crusoe Explaining the Scriptures to Friday, 1836, Alexander G. Fraser the Elder (Scottish Painter, 1786-1865), Oil on canvas, 126.7 x 180 cm, Walker Art Gallery, National Museums Liverpool, UK