Romance XXIV ou da Bandeira da Inconfidência – Cecília Meireles
Através de grossas portas,sentem-se luzes acesas,dentro das casas fronteiras:olhos colados aos vidros,mulheres e homens à espreita,caras disformes de insônia,vigiando as ações alheias.Pelas gretas das janelas,pelas frestas das esteiras,agudas setas atirama inveja e a maledicência.Palavras conjeturadasoscilam no ar de surpresas,como peludas aranhasna gosma das teias densas,rápidas e envenenadas,engenhosas, sorrateiras.Atrás de portas fechadas,à luz de velas acesas,brilham fardas e casacas,junto com batinas pretas.E há finas mãos pensativas,entre galões, sedas, rendas,e há grossas mãos vigorosas,de unhas fortes, duras veias,e há mãos de púlpito e altares,de Evangelhos, cruzes, bênçãos.Uns são reinóis, uns, mazombos;e pensam de mil maneiras;mas citam Vergílio e Horácio,e refletem, e argumentam,falam de minas e impostos,de lavras e de fazendas,de ministros e rainhase das colônias inglesas.Atrás de portas fechadas,à luz de velas acesas,uns sugerem, uns recusam,uns ouvem, uns aconselham.Se a derrama for lançada,há levante, com certeza.Corre-se por essas ruas?Corta-se alguma cabeça?Do cimo de alguma escada,profere-se alguma arenga?Que bandeira se desdobra?Com que figura ou legenda?Coisas da Maçonaria,do Paganismo ou da Igreja?A Santíssima Trindade?Um gênio a quebrar algemas?Atrás de portas fechadas,à luz de velas acesas,entre sigilo e espionagem,acontece a Inconfidência.E diz o Vigário ao Poeta:“Escreva-me aquela letrado versinho de Vergílio…”E dá-lhe o papel e a pena.E diz o Poeta ao Vigário,com dramática prudência:“Tenha meus dedos cortadosantes que tal verso escrevam…”LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,ouve-se em redor da mesa.E a bandeira já está viva,e sobe, na noite imensa.E os seus tristes inventoresjá são réus — pois se atreverama falar em Liberdade(que ninguém sabe o que seja).Através de grossas portas,sentem-se luzes acesas,— e há indagações minuciosasdentro das casas fronteiras.“Que estão fazendo, tão tarde?Que escrevem, conversam, pensam?Mostram livros proibidos?Lêem notícias nas Gazetas?Terão recebido cartasde potências estrangeiras?”(Antiguidades de Nimesem Vila Rica suspensas!Cavalo de La Fayettesaltando vastas fronteiras!Ó vitórias, festas, floresdas lutas da Independência!Liberdade – essa palavra,que o sonho humano alimenta:que não há ninguém que explique,e ninguém que não entenda!)E a vizinhança não dorme:murmura, imagina, inventa.Não fica bandeira escrita,mas fica escrita a sentença.
(Cecília Meireles. In: Romanceiro da Inconfidência. Editora Letras e Artes: Rio de Janeiro, 1965, p. 70)
Ilustra este post a pintura “Martírio de Tiradentes”, de Francisco Aurélio, obra que se encontra no Museu Histórico Nacional. Para detalhes da obra clique aqui. No tema, o motivo religioso está presente, inclusive a associação com a tradicional iconografia de Jesus Cristo – asim como se pode ver também na obra Tiradentes Esquartejado de Pedro Américo, irmão de Francisco Aurélio.
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