Agostinho e o Dom da Fé
Saint Augustine and Saint Monica (“Santo Agostinho e Santa Mônica”), 17th century, Gioacchino Assereto (Italian Baroque Era Painter, 1600-1649), oil on canvas, 99.7 x 123.19 cm (39 1/4 x 48 1/2 in.), Minneapolis Institute of Art (MIA), MN, USA. Large size here.
FÉ AOS QUE PREVIU CRER?
“Porque, se em Tiro e Sidom, se tivessem operado os milagres que em vós se fizeram, há muito que elas se teriam arrependido, assentadas em saco e cinza” (Lc 10.13). Onde está o varão que, entregue ao justo juízo de Deus, se salvará da massa da perdição onde foram abandonados os de Tiro e Sidom? Estes, contudo, teriam crido, se tivessem visto os prodígios de Cristo. Mas não se lhes concedeu a fé nem, consequentemente, os meios de crerem (…). Os habitantes de Tiro e Sidom (…) teriam crido se tivessem presenciado os atos poderosos que os judeus viram.
(Agostinho, De dono perseverantiae, 35)
A DISPOSIÇÃO DE CRER
Precisamos ainda buscar responder a seguinte pergunta: A disposição em si pela qual cremos trata-se de um dom de Deus, ou ela surge daquela livre agência que naturalmente reside em nós? Se dissermos que a fé não é dom de Deus é de se temer que temos descoberto alguma resposta para a censura do apóstolo: “Que tens tu que não tenhas recebido? E se o recebeste, porque te vanglorias como se não o tiveras recebido?” (1Co 4.7). Se o querer crer não nos é dado por Deus poderíamos bem responder: “Vede, temos o desejo de crer, o qual não recebemos. Observe do que nos gloriamos, a saber, algo que não recebemos.” Mas, por outro lado, se dissermos que essa disposição é inteiramente uma dádiva divina, teríamos o receio que pessoas incrédulas e ímpias, embora sem razão, aparentemente teriam uma desculpa razoável para sua incredulidade no fato de que Deus recusou dar-lhes o desejo de crer.
(Agostinho, De Spiritu et Littera, 57)
FÉ: DOM OU VIRTUDE?
Necessariamente se conclui que, sem qualquer virtude de nossa parte, nós recebemos o dom da fé, do qual flui o resto da salvação – não obstante, de acordo com os pelagianos, nós recebemos a salvação em consequência de nossa virtude. Se, porém, eles insistem em negar que a fé nos é dada a troco de nada, qual o sentido das palavras do apóstolo: “Segundo a medida de fé que Deus repartiu a cada um” (Rm 12.3)? E se eles argumentam que fé é concedida como recompensa por virtude, e não como um dom gratuito, o que acontece com outra declaração do apóstolo: “Porque vos foi concedida a graça, não somente de crerdes em Cristo, mas também de padecerdes por Ele” (Fl 1.29)? O testemunho apostólico trata ambas as coisas como um dom: tanto crer em Cristo como sofrer por Ele. Entretanto, estes pelagianos atribuem fé ao livre arbítrio, de modo que percebemos a graça sendo concedida em vista da fé, não como um dom gratuito, e sim como uma dívida. O resultado é que graça já não é mais graça. Como pode algo ser pela graça se não é gratuito?
(Agostinho, De Gratia Christi et de peccato originali, 1:34)
FÉ E OBRAS
A última afirmação de Paulo aqui é, “Guardei a fé” (2 Tm 4.7). Mas o homem que assim fala é o mesmo que em outro lugar declara, “Tenho recebido do Senhor a misericórdia de ser fiel” (1Co 7.25). Ele não diz, “Recebi misericórdia porque eu fui fiel,” e sim, “para que pudesse ser fiel.” Isso demonstra que até mesmo a fé em si não pode estar presente senão pela misericórdia de Deus, e que é um dom de Deus. Paulo nos ensina isso de forma explícita quando ele diz, “Pela graça sois salvos mediante a fé, e isso não vem de vós; é dom de Deus” (Ef 2.8). Os pelagianos possivelmente dirão, “Recebemos graça porque cremos,” assim atribuindo a si mesmos a fé, e a graça a Deus. Portanto, tendo o apóstolo dito, “Sois salvos mediante a fé,” ele acrescenta, “e isso não vem de vós, é um dom de Deus.” E novamente, caso digam que mereciam esse tão grande dom em vista de seu procedimento, ele segue imediatamente com as palavras, “Não de obras, para que ninguém se glorie.” Não que Paulo fosse contra boas obras, ou que as considerasse sem valor, pois ele afirma que Deus retribui a cada um conforme suas obras (Rm 2.6); antes, a fé é que resulta em obras, mas obras não resultam em fé. Consequentemente, vem de Deus que façamos obras de justiça, assim como vem dEle que tenhamos fé, conforme está escrito, “O justo viverá por fé” (Rm 1.17).
(Agostinho, De Gratia et libero arbitrio, 17)
A GRAÇA ANTECEDE A FÉ
Ou se há de reconhecer a doutrina da predestinação como a proclama com evidência a santa Escritura, ou seja, nos predestinados os dons e a vocação de Deus são irreversíveis, ou se há de confessar a concessão da graça de Deus de acordo com nossos merecimentos, como afirmam os pelagianos. (…) No entanto, não acreditam na doação gratuita da graça, como ensina a Verdade, mas professam a doação dela de acordo com os méritos da vontade precedentes, como divulga o erro pelagiano colocando-se contra a Verdade. Portanto, a graça antecede a fé; em caso contrário, se a fé antecede a graça, não há dúvida de que a vontade a precede, pois a fé não pode existir sem a vontade de crer. Mas se a graça antecede a fé, porque precede a vontade, consequentemente precede toda obediência, precede também a caridade, mediante a qual se presta a Deus uma obediência submissa e suave. E isto é obra da graça em quem é concedida.
(Agostinho, “O dom da perseverança XIV, 41” em A Graça [2]. São Paulo: Paulus, 1999)
ESCOLHIDOS PARA CRER
Portanto, Deus escolheu os crentes, mas para que o sejam e não porque já o eram. Diz o apóstolo Tiago: “Não escolheu Deus os pobres em bens deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que o amam?” [Tg 2.5]. Portanto, ao escolher, fá-los ricos na fé, assim como herdeiros do Reino. Pois, com razão, se diz que Deus escolheu nos que crêem aquilo pelo qual os escolheu para neles realizá-lo.
(…) terá atrevimento de dizer que os homens têm fé para ser escolhidos, quando a verdade é que são escolhidos para crer? A não ser que se ponham contra a sentença da Verdade e digam que escolheram antes a Cristo aqueles aos quais ele disse: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi”.
(Agostinho, “O dom da perseverança XIV, 41” em A Graça [2]. São Paulo: Paulus, 1999, 39-41)
CRER É RECEBER LUZ
Se refletirmos no sentido do ato aqui realizado pelo Senhor, aquele cego representa a raça humana. Pois esta cegueira sobreveio ao primeiro homem através do pecado, de onde todos nós temos nossas origens, e de onde procede não só nossa morte como também nossa injustiça. Se incredulidade é cegueira, e fé é receber iluminação, quem foi por Cristo encontrado já um crente quando Ele veio? O Apóstolo Paulo, que pertencia a nação dos profetas, disse: “Nós também éramos por natureza filhos da ira” (Ef 2.3). Se éramos “filhos da ira”, éramos então filhos da retribuição, filhos da punição, filhos do inferno. E de que modo isso é “por natureza”, senão que pelo primeiro pecado do homem, o mal moral se enraizou em nossa própria natureza humana? Se o mal tem se instalado desta forma em nós, todos nascemos mentalmente cegos. Afinal, aquele que enxerga não precisa de um guia. Mas se necessita de um Guia para o iluminar é porque é cego de nascença.
(Agostinho, In Evangelium Ioannis, 44:1)