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“A transformação do sofrimento em adoecimento”

The Doctor and His Patient, Jan Steen

The Doctor and His Patient, Jan Steen (Dutch Baroque Era Painter, ca.1625-1679), Oil on canvas, 76 x 64 cm, Rijksmuseum, Amsterdam, The Netherlands

Nesses dois séculos da “medicina científica”, a fala e a memória do paciente se tornaram objetos de interesse apenas como conjunto de dados informativos para elaboração de diagnósticos, jamais como registros vivos de uma história de trabalho. Para o olhar clínico, a história não está no sujeito, mas em seus prontuários, basta consultá-los. Da mesma forma, é suficiente lembrar a sequência dos sintomas, o aparecimento de seus caracteres atuais, as medicações já aplicadas e as intervenções médicas sofridas. A palavra pela qual o sujeito se faz presença no mundo não é relevante, pelo contrário, pode atrapalhar. O olhar sem a escuta faz da relação médico-paciente uma investigação asséptica, sem verdadeiro diálogo. A medicina para ser científica tentou anular o que há de sujeito no paciente e no profissional, bucando transformá-los, respectivamente, em objeto e instrumento.

[…] No espaço da fábrica pós-industrial, não parece haver lugar para o sofrimento. A tristeza e o medo, ao não serem reconhecidos como dimensões próprias do ato de viver, são transformados em depressão e fobia. Numa cultura marcada pela imediaticidade, o sofrimento é visto como um sinal de fraqueza. Entendemos que não é tanto a doença, mas sim o processo de adoecimento que abre maiores possibilidades de afastamento do trabalho. O adoecimento só é possível devido à existência de um discurso e uma prática que afirmam: “você está doente”; como se a presença da doença e do ser doente pertencessem à mesma categoria. Assim, entre o visível e o enunciável da relação do médico com seu paciente, é preciso perguntar: e o que se fala se dá a partir do que se vê? Ou se enxerga apenas o que já existe como discurso? Se assim for, não se vê, reconhece-se. Aquilo que se fala ao paciente sobre a sua condição se baseia no que se reconhece nele. Logo, é possível deduzir que o médico apenas vê ilusoriamente o trabalhador, pois a doença diagnosticada não está propriamente nele, tem origem em outro lugar: na instituição do discurso médico que conduz à construção de trabalhadores doentes. Sendo assim, a quem pode interessar a produção de trabalhadores incapacitados institucionalmente?

(BRANT, Luis Carlos & MINAYO-GOMEZ, Carlos. In: A transformação do sofrimento em adoecimento: do nascimento da clínica à psicodinâmica do trabalho. Ciência e saúde coletiva, 2004, vol.9, n.1, p.  222)