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O Indivíduo em Multidão – Gustave Le Bon

O que há de mais impressionante numa multidão é o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, sejam quais forem as semelhanças ou diferenças no seu gênero de vida, nas suas ocupações, no seu caráter ou na sua inteligência, o simples fato de constituírem uma multidão concede-lhes uma alma coletiva. Esta alma fá-los sentir, pensar e agir de uma maneira diferente do modo como sentiriam, pensariam e agiriam cada um isoladamente. Gustave Le Bon, 1841-1931Certas ideias, certos sentimentos só surgem e se transformam em atos nos indivíduos em multidão. A multidão psicológica é um ser provisório, composto de elementos heterogêneos que, por momentos, se uniram, tal como as células que se unem num corpo novo formam um ser que manifesta caracteres bem diferentes daqueles que cada uma das células possui. (…)

É este, mais ou menos, o estado em que se encontra o indivíduo integrado numa multidão. Não tem consciência dos seus atos. Nele, tal como no hipnotizado, ao mesmo tempo que certas faculdades são destruídas, outras podem ser levadas a um grau de extrema exaltação. Sob a influência de uma sugestão, esse indivíduo pode lançar-se com irresistível impetuosidade na execução de certos atos. Tal impetuosidade é ainda mais irresistível nas multidões do que no indivíduo hipnotizado, porque, como a sugestão é igual para todos os indivíduos, ao tornar-se recíproca, amplia-se. Os indivíduos de uma multidão que possuem uma personalidade bastante forte para resistirem à sugestão são em número tão diminuto que acabam por ser arrastados pela corrente. Podem, quando muito, tentar desviar-lhe o curso fazendo uma sugestão diferente e, por vezes, uma palavra adequada ou uma imagem evocada a propósito já têm conseguido evitar que as multidões cometam atos sanguinários. (…)

Esta mobilidade das multidões torna-as difíceis de dirigir, sobretudo quando parte dos poderes públicos cai nas suas mãos. Se as necessidades da vida quotidiana não constituíssem uma espécie de regulador invisível dos acontecimentos, as democracias não teriam possibilidade de existir. Mas as multidões que querem as coisas freneticamente não as querem, contudo, durante muito tempo, pois são tão incapazes de uma vontade durável como o são de pensamento. 

A multidão não é apenas impulsiva e móvel. Tal como o selvagem, também ela não admite que se interponham obstáculos entre o seu desejo e a realização desse desejo, e admite-o tanto menos quanto maior for o seu número, o que lhe dá a sensação de um poder irresistível. Para o indivíduo em multidão a noção de impossibilidade desaparece. O homem isolado sabe bem que sozinho não poderá incendiar um palácio ou roubar um armazém e, por isso, a tentação de o fazer nem sequer lhe aflora ao espírito. Mas, ao fazer parte de uma multidão, toma consciência do poder que o número lhe confere e cede imediatamente à primeira sugestão de crime ou de roubo. Qualquer obstáculo inesperado será derrubado com ímpeto. Se fosse possível ao organismo humano perpetuar o furor, poder-se-ia dizer que esse era o estado normal da multidão contrariada.

(Gustave Le Bon, 1841-1931, psicólogo social e sociólogo francês. In: Psicologia das Multidões. Tradução de Ivone Moura Delraux. Série Os Pensadores. Lisboa, Portugal: Edições Roger Delraux, 1980. Excertos dos capítulos I e II. Tradução do original Psychologie des foules, de 1895, publicado em Paris por Presses universitaires de France. O conceito tem sido traduzido também por Psicologia das Massas, talvez de forma mais apropriada. E-books: Português, Francês e Inglês. A tese por ele proposta, embora muito condicionada ao contexto no fim do século XIX, na tradição do liberalismo político e conquanto materialista e até mesmo elitista, expressa em argumentos inquietantes os efeitos psicológicos, em variadas extensões, que grandes grupos amorfos exercem sobre os indivíduos.)

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